DEMOCRACIA DOENTE

Quando as instituições democráticas, ou os seus protagonistas, perdem a noção do papel que lhes cabe e confundem responsabilidades, é sinal alarmante de que algo vai mal na democracia. Quando os sintomas do mal são evidentes, esperar-se-ia dos protagonistas ou dos actores das instituições que tudo fizessem para debelar a doença, evitando assim o risco de morta prematura.Seria essa, suponho eu, a postura correta, não fossem os protagonistas, eles próprios, mentes impreparadas para lidar com tal maleitas e, diria eu, mesmo incapazes de fazerem o diagnóstico. Se o não são, representam na perfeição.
Dois acontecimentos marcaram a semana: a chantagem, cada vez mais evidente à medida que se aproxima a decisão, do Governo sobre o Tribunal Constitucional e o regresso de José Sócrates. Quanto ao primeiro, é difícil compreender como é que um Primeiro Ministro ousa sequer fazer juízos de valor ou comentários sobre eventual decisão do Tribunal Constitucional a propósito do Orçamento de Estado para 2013. Somos levados a pensar que o governo, ao encontrar-se num beco sem saída a que conscientemente ele próprio se conduziu, e na ausência de soluções que ele julga não existirem, tenta encontrar um qualquer bode expiatório que o ilibe das suas responsabilidades. Dizer que os juízes devem ser responsabilizados pelas consequências da sua decisão é transferir a eventual culpa do criminoso ou do réu para a decisão do juiz que o condenou. Segundo esta perspectiva, o criminoso não tem que pensar nas consequências dos seus actos, essa é tarefa que caberá ao juiz. O descontrolo parece evidente e é grande a ânsia de encontrar um qualquer álibi para o insucesso da governação ao ponto de se confundirem e misturarem responsabilidades. A única responsabilidade que pode ser imputada ao Tribunal Constitucional é o respeito pelo cumprimento da Constituição, a Lei pela qual se rege o país. É essa a sua função e é por isso que deve ser avaliado pelos cidadãos. Não cabe ao Tribunal avaliar as consequências de uma lei da qual não é responsável. Essa é uma responsabilidade do governo que ao elaborar o orçamento ou qualquer outro documento sabe que deve respeitar a lei geral do país, ou seja, a Constituição. Não perceber isto ou ignorá-lo é tentar subverter a democracia e é próprio dos estados não democráticos. É um princípio básico que qualquer aprendiz de política percebe. Se o Tribunal tivesse que se preocupar com as consequências das leis que lhe são submetidas e condicionar a sua decisão, não se justificaria a sua existência, já que o poder não teria que se preocupar com a constitucionalidade das leis. Não cabe ao juiz avaliar as consequências do acto para o próprio criminoso, mas sim enquadrar o crime na lei e decidir de acordo com a mesma. Ainda mais grave e incompreensível é que o governo cometa o mesmo erro, o mesmo «crime», dois anos consecutivos. Não se trata apenas de impreparação, mas de arrogância política que julgam estar acima de qualquer lei. Estas pequenas questiúnculas parecem sem importância, mas são reveladoras do quanto falta aos nossos políticos de cultura democrática. Quando não se entende princípios básicos do estado democrático, não se merece os cargos que se ocupa na democracia.

Quanto ao segundo acontecimento, o regresso de José Sócrates, deve interrogar-nos sobre que tipo de debate democrático pretendemos e qual a responsabilidade dos políticos e ex-governantes nesse mesmo debate. Primeiro, não alinho na onda daqueles que pretenderam proibir o seu aparecimento na RTP, julgando-se com autoridade moral e democrática - não sei conferida por quem - para o fazerem. Essa não é a minha preocupação. De uma vez por todas, se estamos mesmo interessados em fazer um verdadeiro debate de ideias, importa ter presente que:
- pessoalizar as questões políticas é iludir as verdadeiras questões e problemas do país e da sociedade;
- não se deve confundir responsabilidade política com responsabilidade criminal. São distintas e, em democracia, têm tratamento diferente.
Dito isto, não invalida que tenhamos sobre os políticos uma opinião e que, com os meios democráticos à nossa disposição, os possamos penalizar. Também não invalida que,seja qual for o governo, possa haver decisões passíveis de tratamento criminal e essas cabem exclusivamente aos tribunais e não à rua ou aos media.
Mas o que realmente me preocupa é que o regresso de Sócrates, e com um mediatismo de privilégio, em vez de contribuir para a elevação do debate democrático vai, ao contrário, radicalizá-lo, pessoalizá-lo ainda mais e entrar num tom de guerrilha próprio de países onde impera a impunidade e a falta de regras e cultura democrática. Para a elevação do debate espera-se, sobretudo de um ex-governante, uma análise fria e distante à sua própria governação, assumindo as decisões e tendo a humildade de reconhecer que houve erros cometidos, mesmo se no momento se julgava não o serem. O distanciamento permitiria essa avaliação. Infelizmente, isso não acontece com nenhum político e Sócrates não será excepção. Era desejável que um ex-governante, tendo em conta a sua experiência e uma avaliação do que foi a sua governação, tivesse sobre a realidade um olhar crítico e tentasse lançar no debate questões essenciais para a construção do futuro colectivo. Infelizmente, estamos longe disso. E não sei, na verdade, se a maioria dos portugueses e portuguesas se identifica com esta preocupação.
Mesmo admitindo que Sócrates é um «animal político» e que a política lhe corre nas veias, não é o tipo de política que aprecio e que, na minha modesta opinião de cidadão, fosse o mais desejável.
Sejam felizes em seara de gente.

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