REALIDADE OU FICÇÃO?

Acontece-me, às vezes, ser atingido por um qualquer relâmpago de patriotismo ou, o que também não abonará nada a meu favor, um certo sentimento xenófobo não propriamente contra pessoas ou povos, mas contra determinados discursos. Embora tendo consciência dos muitos nossos defeitos, irrita-me o discurso de alguns estrangeiros de nos verem como uns coitadinhos, incompetentes e forçosamente dependentes do Estado. E irrito-me sobretudo porque me parece haver alguma injustiça nessa visão, porque nem nós somos coitadinhos, nem tão incompetentes como nos pintam e quanto à dependência do Estado ela não será muito diferente do que existe noutros países tidos como muito mais desenvolvidos. O que me parece, e isso irrita-me ainda mais, é que as nossas fragilidades servem na perfeição determinado discurso ideológico. Reconheço que o escrito nestas linhas seguintes possa não ter qualquer correspondência real ou a verdade nelas expressa seja mínima. Eu próprio não tenho certezas. Contudo, assumo o risco, sobretudo o de contrariar uma ideia que me parece generalizada. Apesar da minha incerteza, parece-me que a nossa dependência do Estado não será maior do que noutros países, nomeadamente nórdicos. O problema, na minha opinião, parece ser outro, já que no nosso caso se trata de uma dependência doentia, desequilibrada e desconfiada. Já várias vezes afirmei que o nosso grande problema é de desconfiança - ninguém confia em ninguém - e de uma forma de estar e de organização que não tem como pressuposto a responsabilização, mas o cumprimento de regras e de procedimentos. O que significa que em vez de valorizarmos o erro como aprendizagem e forma de melhorarmos, privilegiamos a culpa e o castigo, o não cumprimento de regras, porque o essencial não é a responsabilização no sentido de melhorarmos, mas o cumprirmos as regras e os procedimentos na perfeição.
Na verdade, os resultados do desempenho do governo, nomeadamente os que agora foram conhecidos relativamente ao primeiro trimestre do ano, ilustram bem o que acabei de escrever nas linhas anteriores. O discurso que tem sido feito é todo ele no sentido da culpabilização dos cidadãos («vivemos acima das nossas possibilidades») e, consequentemente, é necessário castigá-los com vista a que adoptem um bom comportamento. Não existe responsabilização, apenas o encontrar culpados. Por outro lado, este governo comporta-se como aquelas pessoas que, para obterem boas notas ou o lugar que julgam ter direito, não olham a meios e atropelam que lhes aparecer à frente. A realidade é-lhes indiferente, apenas se preocupando com os seus objectivos porque se convenceram, ou os convenceram, que essa é a única verdade. Se os resultados não são os esperados, o problema está que não se cumpriram todos os procedimentos ou não se castigaram suficientemente os «culpados». A realidade, para os nossos governantes, apenas existe enquanto construção teórica e mental e não como dinâmica complexa tecida de relações e poderes, na maioria das vezes tão iníquos. Não se entende - a maioria dos cidadãos desconfia - que nos venham dizer que afinal os resultados não são os esperados, porque houve comportamentos imprevisíveis, acontecimentos não esperados (subida galopante do desemprego, menores receitas) como se tal facto fosse justificação para o seu desconhecimento da realidade, sobretudo quando outros pré-avisaram. Estes nosso governo é, por um lado, o exemplo do que não deve ser um governante e, por outro lado, a imagem do que é realmente o mundo actual, ou seja, onde os governantes não olham para a realidade das pessoas, apenas se preocupando em encaixá-la na estratégia de interesses e poderes que nos (des)governam. Julgam-se donos e senhores de um futuro, qualquer que ele seja, esquecendo-se que ele não existe se do passado não retirarmos as lições devidas. Era como se pretendêssemos continuar a aumentar a altura de uma construção sem nos preocuparmos com os alicerces. É óbvio que a construção acabaria por ruir. A este propósito, importa aqui relembrar que o frenesim actual das privatizações (atingir objectivos sem olhar a meios) significa o hipotecar de parte do nosso futuro como muitos têm chamado a atenção. Aliás, tal como o hipotecámos quando, para recebermos os milhões, prescindimos da agricultura, das pescas e de alguma pequena indústria. Continuamos a não aprender com os erros, mas apenas a cumprir regras e, no caso, impostas por aqueles que dizem sermos coitadinhos, incompetentes e forçosamente dependentes do Estado. E nós, como alunos exemplares apenas preocupados em atingirmos o nosso objectivo, acabamos por atropelar o nosso próprio futuro.
Atingimos um tal grau de desconfiança que começam a ser preocupantes os sinais que, aqui e ali, vão surgindo de uma revolta calcada que a qualquer momento corre o risco de explodir. Mas o mais preocupante é que não exista uma instituição em que os cidadãos sintam ser a reserva da democracia, a reserva de uma ética democrática na qual se sintam protegidos e, sobretudo, reconhecidos. O Presidente da República, concorde-se ou não com as posições - deveria ser, pelo menos ele, essa reserva. Infelizmente, acontece que a desconfiança em relação a ele é cada vez maior, aliás atingindo um grau nunca antes visto. A falta de visão política que lhe permita ter um horizonte de futuro e de esperança ou a sua visão demasiado autocentrada e egocêntrica levaram-no porventura a cometer erros grosseiros e fatais que os portugueses dificilmente perdoam. A um Presidente exige-se não uma pose de executivo, mas a capacidade de ousar reflectir sobre a realidade (correndo riscos) e propor caminhos de futuro. Infelizmente, os portugueses desconfiam cada vez mais e sentem o peso de um certo abandono, uma solidão a que os condenaram sem que para isso - ao contrário do que nos querem fazer crer - tenham contribuído demasiado.
Os focos da revolta apenas estão adormecidos. E depois não nos venham dizer que nada o fazia prever!
Sejam felizes em seara de gente.

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