ESTA MALTA AINDA NOS MATA
1. Em Portugal existe a terrível mania de tudo contestarmos e nos julgarmos acima de qualquer decisão ou emitirmos juízos de valor sobre funções que outros desempenham como que pretendendo possuir uma autoridade que não temos. Isto apenas demonstra o quanto somos lestos a defender interesses próprios e pouco atreitos a defender o bem colectivo. Somos um país de quintinhas, de quintais, de parcelas... com pouca consciência do que realmente nos une. Aliás, temos o condão de desvalorizar o que eventualmente poderia, mesmo se simbólico, motivo de união. Mas quando se trata de maldizer aí estamos nós prontos para a festa. Povos há que valorizam o que de bom possuem ou fizeram, tentando melhorar o que de menos bom ou mau também têm. Nós temos o comportamento contrário, valorizamos - dizendo de mal - o que de menos bom ou mau temos e desvalorizamos ao ponto de ignorarmos o que de bom ou muito bom também possuímos. Parece que apenas encontramos a felicidade maldizendo.
Em vez de acatarmos as decisões de quem tem o poder de decidir, estejamos ou não de acordo, e procurarmos vias e argumentos que nos dêem razão, preferimos lançar a desconfiança e contestar sempre com a esperança de que ao desvalorizarmos a decisão, o Órgão que a tomou ou a função daqueles que a exercem, tudo acabará por se ajustar aos nossos belos interesses. E estes serão os mesmos, estou certo, que em outros momentos dirão cobras e lagartos sobre a justiça. O problema é que eles não estão minimamente interessados na justiça - até chego a duvidar que sobre o assunto tenham a mais leve ideia! - mas apenas na defesa dos seus «justos» interesses. A justiça, por mais injusta que possa ser para outros, deve-se ajustar à medida dos seus valores e interesses. Gente assim não merece o nosso respeito.
Vem esta conversa a propósito do Acórdão do Tribunal Constitucional sobre o corte do subsídio de férias e de Natal e das inteligências que contra eles (Acórdão e Tribunal) e contra eles (juízes) vociferaram como se de um crime se tratasse. Tentemos colocar os pontos nos iis, já que colocar essa gente no lugar que mereceria seria de mau tom e de péssima educação. Em nome da verdade, importa dizer que também há quem tenha entrado na onda apenas porque foi apanhado pela vaga, não os movendo quaisquer interesses. Pelo menos, eu quero acreditar. Mas vamos ao que interessa.
1. Desde o início, quando foram anunciadas as medidas, pessoas houve que chamaram a atenção para a sua inconstitucionalidade. E não foi apenas a oposição, o próprio Presidente, embora timidamente e parco em coragem, também o fez. Assim, este desfecho era minimamente previsível.
2. A decisão do Tribunal Constitucional, concorde-se ou não, é para respeitar, caso contrário para quê a sua existência? Bem sei que alguns desejariam que não existisse, mas ainda bem que existe, pese embora a forma como são escolhidos os seus membros.
É bom que se respeitem as decisões em vez de sobre elas se lançar a suspeita. E não tem qualquer sentido cunhar a decisão de política, já que a Constituição - fosse ela qual fosse - assenta também em princípios políticos no sentido em que regem a forma de um país se organizar. Acresce ainda o facto de, por leviandade ou propositadamente, se fazer uma leitura do Acórdão à medida dos interesses vigentes e não no que tem de essencial.
Isto significa que quem assumiu o risco de tais medidas terá agora que assumir a responsabilidade e não, como tudo parece indiciar, atribuir a terceiros a responsabilidade pela má opção. Em vez de perderem tempo e gastar energia a lançar desconfiança, deviam procurar debruçar-se sobre o essencial e perceber como atingir os objectivos por outras vias. O problema é que optando por esse caminho irá doer aos interesses instalados.
2. Este governo começa a tornar-se perito em anunciar pequenos detalhes como se de grandes medidas se tratasse. Apenas dois exemplos.
O primeiro tem a ver com o benefício em sede de IRS, até ao montante de 250 euros, de uma percentagem do IVA na facturação de restaurantes, cabeleireiro, oficina automóvel... Só podem estar a brincar, já que não quero acreditar que sejam tão maus nas contas que fazem ou do juízo que fazem dos contribuintes. Contas feitas, para beneficiar dos 250 euros, teria que juntar facturação na ordem dos 27 000 euros. Afinal, a medida destina-se a quem? Eu não faço parte do lote (nem o meu salário anual ilíquido daria para tanto...) e, mesmo que fizesse, imaginem a trabalheira (o tempo é dinheiro) a organizar tantas facturas, a guardá-las não sei quantos anos... para beneficiar de 250 euros. Para quem tem gastos dessa ordem, os valores são insignificantes. Por outro lado, com esse nível de gastos, o escalão em que se encontram não permite tais benefícios. Então para quê esta fanfarra? Tratar os contribuintes como mentecaptos só mostra o como as pessoas que nos governam são, no mínimo, arrogantes e intelectualmente desonestas.
O segundo caso tem a ver com as medidas sobre o Rendimento Social de Inserção. Primeiro, gostaria que me demonstrassem qual a poupança que daí resulta, ou seja: quantos recebem indevidamente o RSI por terem poupanças no banco e quanto é que isso representa em termos de poupança; quantos são «os realmente pobres» e quem são; quantos são os que se encontram em idade activa que recebem o RSI e em que condições; finalmente, quantos são os que vão prestar trabalho à comunidade e que tipo de trabalho. Não me é suficiente, até porque as contas do RSI que muitas vezes apresentam não correspondem à verdade, que atirem para o ar medidas populistas que apenas servem para estigmatizar ainda mais a pobreza e criar um sentimento de hostilidade da população em relação aos mais carenciados. Misturar pobreza e idade activa, dando a entender que os activos não têm que ser pobres, é perigoso e revela desconhecimento dos mecanismos que conduzem à pobreza ou mantêm aqueles que nessa situação se encontram. Basta relembrar que grande percentagem dos pobres são produtores de riqueza - trabalham -, mas que devido aos salários que auferem não lhes é possível romper o ciclo. Há medidas cujo alarido apenas serve interesses menos claros e hostilizar a parte mais fragilizada. Estes comportamentos, mesmo se inconscientes, revelam uma ideia fascizante da sociedade: de um lado, os bons e do outro, os maus, os malandros. Quando este tipo de comportamento é dos governantes, temos mesmo que nos preocupar.
3. A propósito de pobreza e de interesses, importa aqui sublinhar as palavras de Albert Jaeger, funcionário do FMI que acompanha em Portugal a execução do Programa da Troika: "Num país que está na UE desde 1986 e em que o salário à hora de um trabalhador qualificado no sector industrial é de dez euros, se um empresário não consegue ser competitivo, é porque existem outras questões que precisam de ser abordadas". Exemplar! Pena é que os Srs, Borges e Companhia não tenham um pingo de vergonha e continuem a afirmar que o caminho para a competitividade é a baixa de salários. Mais, existem estudos, nomeadamente no estrangeiro, que apontam outros factores para a falta de competitividade das empresas que não os custos do trabalho. Se assim é, porque insistem estes senhores em tão grande aberração? Com que autoridade nos vêm eles falar de pobreza e de RSI? Será que não se dão conta do ridículo, ou será que o ridículo se confunde com inteligência e bom senso quando se tem ou está no poder?
Sejam felizes em seara de gente.
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