OS DOUTORES DO "CHICO-ESPERTISMO" PORTUGUÊS
O caso Relvas - bem como o caso Sócrates - não passa de uma caricatura do País que somos e que, aceitemos ou não, todos ajudamos a construir ao longo de muitos anos.
Para que fique claro, não me incomoda que existam casos em que seja conferido determinado título, perfeitamente justificado, a quem, pela experiência e exemplo, mostre e comprove possuir um saber e uma competência de acordo, mesmo se não adquiridos pelas vias tradicionais, ou seja através do meio académico. E, ao contrário do que muitas vezes a imprensa quer fazer crer, nada disto é inédito ou novo. O que me incomoda e revolta é que não haja critérios de exigência ou que os únicos eventuais critérios sejam os da influência, da troca de favores, do «chico-espertismo» e da grande falta de transparência. Aliás, penso que anualmente as Faculdades deveriam revelar os diplomas atribuídos nessas condições e a quem. Para além de serem públicos e qualquer pessoa, desde que cumprindo determinados requisitos, pudesse consultar. Além da transparência, evitaria que alguns se sentissem injustiçados. Infelizmente, nada disso se passa e tudo parece cozinhado entre amigos a troco de favores, presentes ou futuros. Há gente, alguns bem conhecidos da nossa Praça, que não necessitam de licenciatura ou de qualquer outro título honorífico para desempenharem com competência as funções em que foram empossados.
Este é o País onde o «chico-espertismo» é obra de artista ou feito heróico. Fintar os outros não cumprindo as regras, saber atingir os seus objectivos - nem sempre os mais nobres - por becos e travessas, de preferência bem escuros, para que não dê muito nas vistas, está muitas vezes mais próximo da qualidade que do defeito. Vangloriamo-nos dos feitos heróicos contra a cidadania, porque ninguém nos condena, pelo contrário, até somos merecedores de aplausos. Este é o País que se divide apenas em duas classes: uma a dos espertos e outra a dos parvos. Inteligentes, mesmo que os haja, a maioria pertencerá inexoravelmente à classe dos parvos, já que dificilmente o «chico-espertismo» poderá conviver com a inteligência.
Este é o País onde ter um canudo é mais importante que tudo o resto, onde a aquisição do dito nos confere direitos e nos dispensa dos deveres. Este é o País onde a competência é substituída pelo faz-de-conta, desde que se possua o tão almejado canudo. Tempos houve em que para atingir tão almejada meta era imperioso suar as estopinhas. O objectivo era, sem dúvida, o título, mas sobretudo a aquisição de um saber que permitisse posteriormente construir uma carreira fosse ela qual fosse. Eram outros tempos, dir-me-ão. É verdade, mas o argumento não invalida, antes pelo contrário, que o tão almejado canudo deva corresponder a uma realidade e não a um qualquer jogo virtual. Hoje, face aos desafios do mundo do trabalho, mais se exigiria que assim fosse. Infelizmente, os diplomas transformaram-se numa espécie de títulos honoríficos que não correspondem ao nível de saber, competência ou experiência adquiridos. Uma espécie de aristocracia académica falida, mas que continua a pensar que o título lhe permite manter o status. É verdade que a degradação do ensino universitário com a atribuição de licenciamentos a privados que tinham como único objectivo o lucro e não a qualidade do ensino, a demissão do próprio Estado em exigir a essas instituições padrões mínimos de qualidade e de rigor, muito contribuiu para o estado em que nos encontramos. Para não falar dos professores que, por falta de estatuto, dão uma perninha aqui, outra acolá ou desafiavam mesmo os seus alunos do ensino público a irem fazer exames ao privado. Mesmo os doutoramentos, que em tempos apenas eram autorizados a quem já tivesse dado provas na área da experiência e da investigação - na posse de alguma maturidade - representam muitas vezes o final do ciclo normal de estudos universitários, adiando dessa forma a entrada na vida activa. Como em tempos os mestrados eram uma forma de alguns professores ganharem mais uns trocos. Não digo que esteja errado - nem tão pouco tenho autoridade para ajuizar - apenas quero sublinhar o facto de que nesse encurtar de experiências algo se perdeu. É evidente que também algo se ganhou, mas importa ter consciência das perdas e dos ganhos e fazer uma avaliação séria, por respeito a todos os que mereceram o referido título e também pela dignidade do ensino universitário e de todos aqueles - sobretudo professores, estudantes - que sempre tudo fizeram para o dignificarem.
Não sejamos ingénuos, nem joguemos o jogo hipócrita do faz-de-conta, porque estes casos, semelhantes na sua essência a muitos outros, apenas ganharam importância pelo mediatismo de que são ou foram alvo os seus protagonistas. Bastar estar atento quando se está no trânsito, quando se anda de transportes públicos, quando se vai a uma repartição, quando olhamos para determinados projectos camarários ou nacionais, quando percebemos sinais exteriores de riqueza de pessoas que nada fizeram para tal, para nos darmos conta de que o «chico-espertismo» está entranhado na vivência quotidiana do País. Isto para não falar - tema da comunicação social já por diversas vezes - das teses de mestrado e de doutoramento pagas, muitas vezes, a peso de ouro. Pessoas que aparentemente fizeram tudo segundo as regras, e que se vangloriam dos seus títulos, mas que afinal foram comprados, como noutros tempos a burguesia endinheirada comprava títulos aristocráticos. E, segundo consta (foi dito em algumas dessas reportagens), algumas dessas pessoas são bem conhecidas. Mas, como o segredo é a alma do negócio... é algo que nunca desvendaremos.
Tentem, como este parvo que aqui escreve, ser felizes em seara de gente.
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