DESCONFIANÇA DO ESTADO SOCIAL

Este país parece gostar de correr riscos de cujas implicações futuras não tem qualquer ponta de consciência. O governo (ou governos) em vez de minimizar os riscos, como seria seu dever e responsabilidade, tende em alguns casos a ampliá-los ou, no mínimo, a enfatizá-los. É sabido que o Estado Social (ou aquilo que dele nos tocou), tal como o conhecemos, passa por grandes dificuldades, tal como também acontece com as sociedades em que se insere.

Feita a constatação há que perguntar se o que realmente está em crise é o Estado Social ou a organização das sociedades e a ideia de desenvolvimento e bem-estar em que se fundamentam. E não me refiro apenas ao nosso país, pois essa é moda que parece ter também vingado em outros países europeus. Se o fosso entre os mais ricos e os mais pobres se alargou nas últimas décadas, se os países desenvolvidos não foram capazes de resolver o problema da pobreza e da exclusão, agravando mesmo o problema, tão crua realidade leva-nos a concluir que o problema não estará exactamente no Estado Social, mas sim na sociedade e na forma como ela redistribui a riqueza que cria. Importa ainda perguntar se os países criam realmente riqueza ou se se trata essencialmente de uma riqueza virtual de natureza especulativa, que apenas serve - ao contrário da produtiva - uma muito reduzida minoria que vive às custa da grande maioria. E é ainda mais grave quando os governos preferem fechar os olhos, ilibando os seus intervenientes de algumas das suas responsabilidades e do pagamento de taxas ao contrário da riqueza de natureza produtiva. E isto é feito em nome ou com o argumento que a penalização do capital é prejudicial às economias, ao investimento. Como se as coisas, tal qual se passam, fossem benéficas à economia! Só podem estar a brincar com a nossa boa-fé. 
A diferença fundamental entre uma e outra forma de criação de riqueza é que na forma produtiva existe, mesmo se desigual, uma redistribuição de riqueza quase imediata e directa, seja através da criação de empregos e respectivos salários, seja no impacto na economia dos territórios por força da criação de empregos directos e indirectos. Além disso, o factor de proximidade entre empregador e empregado - mesmo nas  multinacionais - cria espaços de diálogo e de reivindicação, impossíveis na especulação financeira. Por isso, a questão do emprego e do desemprego e a forma como se aborda o problema é tão fundamental nas sociedades actuais, já que é precisamente aí que se joga o seu futuro, pois caso não haja o mínimo de equidade na redistribuição de riqueza as sociedades acabarão por sucumbir sob o peso das iniquidades e exclusão que elas próprias geraram.

Os desempregados, apesar da sua situação, não deixam de ser, mesmo do ponto de vista do mercado, o que poderíamos de apelidar de «produtores passivos», já que enquanto consumidores de bens e serviços, contribuem indirectamente para que outros possam continuar a produzir, ou seja, mantenham o seu posto de trabalho. Esta noção dá-nos por um lado uma consciência de solidariedade e, por outro, consciência do quanto é importante uma maior justiça na redistribuição da riqueza e obriga-nos a olhar para a problemática do desemprego e do emprego de uma outra forma.
Parece correr por aí, e algumas declarações nesse sentido já foram feitas, a ideia de que é necessário não só encontrar ocupação para os desempregados como forma de eles retribuírem (reembolsarem) à sociedade parte dos custos que ela suporta enquanto se encontram nessa situação. Confesso que também eu já caí na tentação de me interrogar sobre se o desempregado não deveria de alguma forma compensar a sociedade pelo subsídio recebido. Mas rapidamente percebi que esse raciocínio não tem qualquer suporte. Ele assenta essencialmente em dois pressupostos que têm subjacente uma ideologia - velada de moralidade - geradora de exclusão:
1. Parte do pressuposto que as pessoas estão desempregadas porque querem, por opção, por malandrice;
2. Exigir uma compensação significa olhar para o desempregado como alguém que é culpado, que cometeu uma espécie de crime. O réu passa a criminoso.
Essa ideia, consciente ou inconscientemente, confunde dois princípios básicos:
1. Não se deve confundir a parte com o todo. Se é verdade que podem existir situações anómalas, é dever dos serviços e responsabilidade dos governantes evitar que essas situações aconteçam, resolvê-las e, se for o caso, penalizar os prevaricadores. Como em qualquer outra situação há sempre quem tente furar as normas. A crise actual é um bom exemplo!
2. Como qualquer ser humano, também o desempregado faz contas à vida e, muitas vezes, aceitar um trabalho não lhe traz grandes vantagens, pelo contrário, em termos de economia familiar de curto prazo as desvantagens têm por vezes maior peso. É difícil para um desempregado cuja família passa por dificuldades perceber que é mais importante estar inserido no mercado de trabalho, mesmo ganhando menos, do que continuar desempregado. Esta é uma questão sobre a qual importa reflectir.
Pretender que os desempregados prestem algum serviço à comunidade em troca do subsídio de desemprego ou outro é não apenas penalizante para os próprios como me parece profundamente imoral, injusto e mesmo anti-democrático. Sejamos claros:
  • A pessoa já é penalizada por estar desempregada (a não ser que alguns expoentes da política pensem que essa é uma situação de puro lazer!)
  • Já contribuiu, ela e outros, para a eventualidade de ao cair em tal situação não ficar desprotegida;
  • Pretendem que ela volte a contribuir (custear de novo), apesar da sua situação.
Isto significa que o desempregado seria triplamente penalizado. Para uma democracia que deverá ter como um dos valores fundadores a solidariedade e como princípio a equidade, trata-se de algo assustador e perigoso. Perigoso porque se corre o risco, como aconteceu noutros países, da massa de desempregados ir ocupar postos de trabalho a baixo custo para os empregadores engrossando ainda mais a massa dos excluídos da sociedade.
Olhar para o desemprego e tentar entendê-lo implica, desde logo, perceber que nem todos temos a mesma atitude perante o trabalho e a mesma percepção dos benefícios ou desvantagens. Será isto muito diferente do conjunto dos empregados? Penso que não. Em segundo lugar, há que entender que a tendência de diminuição dos custos de produção à custa do factor trabalho tem implicações na forma e na atitude dos desempregados perante a oferta de trabalho. A discussão sobre o salário mínimo ao longo dos últimos anos ilustra na perfeição o entendimento que se tem sobre estas questões e o significado da Solidariedade e da Consciência Social neste nosso país. Inadmissível, imoral, é também o facto de pessoas que trabalham, que produzem riqueza, continuem numa situação de pobreza. Onde está a equidade na redistribuição da riqueza? Tente-se perceber, faça-se pedagogia de exigência, mas não se transformem os réus em culpados, porque estes certamente serão outros, os quase intocáveis.
Tudo isto é ainda mais preocupante quando se percebe que esta visão sobre o desemprego é muito mais abrangente, já que ela é reveladora do entendimento e da percepção que a elite que nos governa tem da pobreza e da exclusão. Tem-se a sensação que culpam os pobres da sua situação, incapazes de irem mais além e de mudarem a sua vida. São uns coitados, sem capacidade para perceberem o mundo em que vivem e, por isso mesmo, uma espécie de apêndices destas sociedades de progresso. Há que ajudá-los dando as migalhas que caiem da mesa farta dos poderosos deste mundo, que trabalharam arduamente para que a sociedade ficasse mais rica, mesmo que o número de pobres seja ainda maior. Lembram-se dos yuppies?! Pois eles estão de volta, mas agora mais requintados e com alguns cabelos brancos!
Ao contrário do que nos querem fazer acreditar, as diferenças entre esquerda e direita não se diluíram. Esta é uma diferença fundamental entre esquerda e direita e eu sou de esquerda. Em vez de desconfiarmos do Estado Social, há que acreditar que ele é possível, pois não será ele o anseio de todos os povos?! Pessoalmente desconfio e não acredito naqueles que facilmente desistem dele ou nos querem fazer crer na sua impossibilidade. Não será com a mesma arquitectura actual, existem certamente dificuldades que importa ultrapassar, mas é nosso dever colectivo procurar soluções, pois se assim não for estamos a construir sociedades sem futuro, já que elas apenas serão sustentáveis se assentes na solidariedade, na equidade, na justiça e na liberdade. 

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