NEGÓCIOS SOCIAIS

EXERCÍCIO DE CIDADANIA . AFIRMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA SOCIAL

Existe alguma falta de clareza na utilização de vários termos como sejam  Empreendedorismo Social, Negócio Social ou Empresa Social. Esta mesma falta de clareza também resulta do entendimento que destes termos se tem nos diferentes países ou regiões do globo e da literatura daí resultante.
Embora actualmente seja politicamente correcto falar de Negócios Sociais, a verdade é que eles já existem há algum tempo, apesar de, numa perspectiva económica, não tenham tido a visibilidade desejada. Mais uma vez, coube a Muhammad Yunus o mérito de lançar para a discussão mundial este tema.




Mas voltemos ao que nos trouxe aqui. Como dizia, o entendimento que se tem destas questões é diferente de região para região e prende-se também com aspectos culturais.
Enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, o conceito de Economia Social não é utilizado, sendo as Empresas Sociais normalmente discutidas no contexto da economia de mercado, na Europa elas aparecem estreitamente ligadas à Economia Social e Solidária. Digo solidária não por uma questão de entrar numa guerra de conceitos, mas apenas porque para mim faz mais sentido, uma vez que reforça a componente relacional da Economia Social e sublinha a consciência social de quem nela se envolve e participa. Trata-se, pois, apenas de uma questão de gosto pessoal. O termo Empresa Social, nos Estados Unidos, começou a ser difundido sobretudo a partir do final dos anos 70 quando, devido à retracção dos apoios estatais, as organizações não governamentais, como forma de sobrevivência, começaram a expandir as suas actividades comerciais. Assim, o desenvolvimento do conceito teve como base a lógica de geração de receita para o financiamento das organizações sem fins lucrativos.

Como definição, e refiro-me aos EUA, EMPRESA SOCIAL engloba organizações com fins lucrativos que tenham objectivos sociais. Trata-se de empresas híbridas, com duplo objectivo, que tentam estabelecer o equilíbrio entre as actividades comerciais lucrativas e a sua missão. Isto significa que neste embrulho cabe toda a espécie de iniciativas que tenham de alguma forma objectivos sociais: filantropia/responsabilidade social, ONG’s, iniciativas de grandes empresas, etc. 
Significa isto que nos EUA predomina uma cultura do que poderíamos chamar do «Indivíduo Empreendedor». Ou seja, trata-se de iniciativas desenvolvidas por pessoas ou organizações não governamentais em busca do financiamento da sua causa social. Mas aqui entram também as iniciativas sociais das grandes empresas.
Na Europa, as Empresas Sociais ganharam importância no contexto da crise do Estado Social e radicam numa lógica de substituição do Serviço Público, sendo fortemente marcadas pela cultura da Economia Social e da tradição cooperativista. Assim, na Europa, as Empresas Sociais, têm tendência a enfatizar ou dar prioridade ao modelo de governança ou, pelo menos, no seu aspecto formal, já que no confronto com a realidade as coisas parecem ser mais complexas. Algumas das suas principais características:
ü  Objectivo explícito de beneficiarem a comunidade
ü  Criadas por grupos de cidadãos
ü  O retorno do investimento está sujeito a limites

ALGUNS EQUÍVOCOS
 Acabar com a Pobreza

Gostaria de chamar a vossa atenção, mesmo se muito sinteticamente, para alguns equívocos, raramente evidenciados, ou, dito de outro modo, clarificar o nível das expectativas que por vezes estas iniciativas criam ou as ilusões que podem alimentar.
O primeiro de entre eles prende-se com a ideia de que esta multiplicidade de iniciativas da Economia Social e Solidária podem acabar com a pobreza.
A inovação social e a Economia Social, nomeadamente através dos negócios sociais, microcrédito ou outro tipo de actividade, não têm a pretensão de acabar com a pobreza e a injustiça económica. Mais não pretendem que ajudar a resolver algumas situações concretas, dinamizar territórios à escala local, ajudar a minorar os efeitos da miséria e da pobreza, desenvolver e apoiar o empreendedorismo inclusivo ou o emprego, permitir o acesso de pessoas sem meios a serviços de saúde, educação ou outros, etc. Ou seja, apoiar e desenvolver uma pedagogia do desenvolvimento. Não se crie a ilusão de, através desses meios, se pretender acabar com a pobreza. Contudo, estas iniciativas não deixam de ser importantes, bem pelo contrário, não apenas pelos efeitos concretos na vida das comunidades e das pessoas, mas também pelo efeito que têm na alteração de comportamentos e de mentalidades e no alerta das consciências e do exercício da cidadania, o que nem sempre é devidamente valorizado.
Por outro lado, de nada adianta cruzarmos os braços à espera do óptimo quando ele apenas existe como meta utópica e o melhor que conseguiremos é uma aproximação em pequenos passos. Assim sendo, mais vale fazer alguma coisa do que esperar que as coisas aconteçam no melhor dos mundos que idealizámos. Até porque se assim fosse também não seriam necessárias tais iniciativas.
Aliás, o próprio Yunus, como economista que é, tem bem consciência do problema, embora, como é natural, tenha tendência a enfatizar o valor das iniciativas e não a perder tempo com explicações ou a teorizar sobre a forma de resolver os problemas do mundo.
Como ele próprio sublinha, a pobreza tem causas complexas que radicam na forma organizativa da economia.
A propósito da actual crise, diz ele (Empresa Social):
«Não deveríamos perder a oportunidade de converter as nossas instituições financeiras em instituições inclusivas».
Ou ainda segundo as suas palavras:
«Nós somos capazes de criar um mundo livre de pobreza se reformularmos o nosso sistema de modo a eliminar as graves falhas que geram a pobreza».
A pobreza
«É criada pelo sistema que construímos, pelas instituições que organizámos e pelos conceitos que formulámos».
Por outro lado, e continuo a citar Yunus:
«Esquecemos que a crise financeira é apenas uma das várias crises que ameaçam a humanidade. Todos nós estamos a sofrer uma crise global de alimentos, uma crise de energia, uma crise ambiental, uma crise do sector da saúde e as crises sociais e económicas persistentes têm como consequência a pobreza mundial maciça».
  Ao contrário do que muitas vezes se faz crer, existe uma relação entre estas diferentes crises, pois a causa comum prende-se
«com uma falha fundamental no nosso edifício teórico do capitalismo».

Empreendedorismo Social
O segundo aspecto para o qual gostaria de chamar a vossa atenção, até porque está muito na moda, é o Empreendedorismo Social. A frase que talvez melhor define o Empreendedorismo Social é: «entre ganhar dinheiro ou fazer a diferença no mundo, fique com as duas».


Trata-se de uma empresa que poderíamos dizer de dual, ou seja, cuja actividade se insere entre dois pontos: a procura do lucro – individual – e a resolução de um problema social. Procura-se investir no sentido de criar produtos e serviços que melhorem a qualidade de vida das pessoas e tragam desenvolvimento para a sociedade, tendo sempre subjacente o lucro individual, ou seja, o lucro para os proprietários, para os investidores.
Yunus defende que os empreendedores sociais devem descartar o dualismo entre lucros e benefícios sociais. Quando misturamos lucro com benefício social e pretendemos atingir metas, objectivos, introduzimos uma complexidade e um espaço dúbio, uma fronteira que não é clara, porque os objectivos também não são claros. Podemos, objectivamente, colocar a questão:
Em tempo de crise, de recessão, o que privilegiamos, os objectivos sociais ou os objectivos do lucro? Quais as prioridades? E se estiver em causa a sobrevivência da empresa?

Responsabilidade Social
Responsabilidade Social, na minha opinião, não é a mesma coisa que filantropia, embora haja neste campo uma grande confusão. Responsabilidade Social exige, em primeiro lugar, CONSCIÊNCIA SOCIAL, o que, na minha opinião, existe muito pouco ou é pouco cultivada neste nosso país, nomeadamente ao nível do tecido empresarial.
Importa perceber, e disso ter consciência, de que a Responsabilidade Social é algo inerente às empresas, já que elas estão inseridas em determinado território, têm trabalhadores ao seu serviço e utilizam recursos naturais que são património da humanidade, sobretudo das gerações vindouras, ou seja, cada geração é apenas gestora desse património dos recursos colocados à nossa disposição.
Responsabilidade Social é, ou deveria ser, inovação e crescimento no sentido de oferecer novas oportunidades à comunidade e, em consequência, à Sociedade.
Permitam-me que introduza aqui uma ideia, para mim importante, e que se prende com o tipo de desenvolvimento e que, de alguma forma, é uma responsabilidade acrescida para a Economia Social e Solidária. É sobre a riqueza criada e a qualidade dessa riqueza. Actualmente, fala-se muito na criação de riqueza, mas nada se diz que tipo de riqueza se quer. Importa perceber que a criação de riqueza requer a utilização de recursos naturais, tem efeitos no ambiente, nos territórios, nas comunidades… ora o balanço final pode não ser positivo. De nada adianta dizer que criamos riqueza se empobrecemos o património da humanidade e se esse custo é muito superior à necessidade desse bem. Esta consciência evitaria, ou pelo menos reduziria, a satisfação de necessidades induzidas que, muitas vezes, apenas favorecem os interesses particulares de quem lucra com isso, ou seja, a maximização do lucro. Ao contrário do que muitos dos discursos nos querem fazer crer, a erradicação da pobreza não radica apenas no crescimento do PIB, já que o seu crescimento não significa necessariamente diminuição da pobreza. Aliás, pode até - como sublinha Yunus - não ter qualquer impacto nos pobres. Ainda segundo Yunus parece existir dois tipos de crescimento: um para os pobres e outro para os restantes dos mortais. A criação de riqueza é muitas vezes feita à custa do empobrecimento de muitos e esse não é certamente o caminho.
Uma outra nota a propósito da maximização do lucro. Nas últimas décadas assistiu-se a uma inversão completa de valores no que toca ao investimento. Se é verdade que na economia o papel dos investidores é fundamental para a criação e desenvolvimento das empresas e sua sustentabilidade, hoje com a desmesurada importância que adquiriu o mercado financeiro, os investidores investem não para desenvolver as empresas, mas para ganharem dinheiro no mercado financeiro (rentabilizar ao máximo as acções, mesmo se à custa de engenharia financeira). Esta inversão teve efeitos perversos terríveis para as pessoas e territórios e tem apenas como objectivo a maximização do lucro.
Ao levantar estas questões, não pretendo diminuir o papel destas iniciativas nas sociedades, pelo contrário, tudo o que se possa fazer para melhorar este nosso mundo e sobretudo a vida daqueles que nele habitam me parece dever ser valorizado. Mas isso não nos impede de ter um olhar crítico sobre a realidade.
O próprio Yunus, esclarece:
«…nada contra o lucro ou contra os negócios tradicionais. Mas para definirmos claramente o conceito de «negócio social», é preciso diferenciá-los de empreendedorismo social ou responsabilidade social. Se o lucro para os donos ou investidores for uma das prioridades, já não é negócio social – embora possa ser uma iniciativa valiosa pela causa social».

NEGÓCIO SOCIAL
Numa definição muito genérica, poder-se-á dizer que o Negócio Social é aquele tipo de negócio que, utilizando mecanismos de mercado, tem como objectivo a resolução de problemas sociais. Significa isto, e como já vimos, que os negócios podem reduzir a pobreza.

Importa contudo ter algum cuidado na abordagem e não criarmos expectativas que dificilmente serão correspondidas. Há que sublinhar que a ideia de Negócio Social se inscreve numa visão mais vasta do liberalismo económico. Ela defende que a troca mercantil, guiada pelo princípio da concorrência, sem qualquer outra intervenção, é eficaz tanto economicamente como socialmente, conduzindo assim à concretização do interesse geral, do bem comum. Assim, deste ponto de vista, o negócio social não se situa na mesma perspectiva de outras concepções e experiências da Economia Social e Solidária que se afirmam como alternativas socializantes ao liberalismo económico.
Nas palavras de Yunus, Negócio Social é:

«Um modelo de negócios inovador que promove a ideia de fazer negócios com o objectivo de resolver um problema social e não apenas maximizar o lucro»

Assim, e de uma forma muito sintética, podemos definir Negócio Social a partir de três características essenciais:


Os Negócios Sociais devem gerar impacto social e/ou ambiental relevante. E é importante, diria fundamental, que existam indicadores que permitam medir esse impacto.
As receitas geradas têm que obrigatoriamente cobrir os custos e os investimentos associados ao negócio.
Uma das características fundamentais é a inclusão de grupos desfavorecidos, ou seja, o negócio tem que se dirigir àqueles que se situam na base da pirâmide social.
Um negócio social deve atender, através de seus produtos/serviços, ou incluir na sua cadeia de valor, através da distribuição do lucro gerado pelo negócio, a base da pirâmide ou outros grupos que carecem de inclusão social. 
Importante:  No caso de negócios sociais que visam impacto ambiental, o importante é endereçar problemas ambientais através da actividade principal do negócio.

 EMPRESA SOCIAL
Criação de valor em várias vertentes:







Para Yunus existem dois tipos de Negócio Social que podem contribuir para o desenvolvimento económico:
·         Empresa Social: procura sobretudo, mais que o lucro para os seus proprietários, resolver situações sociais concretas. Investidores desejosos de contribuir no sentido da criação de benefícios sociais. Ex. Grameen Danone, cujo objectivo é «reduzir a pobreza graças a um modelo económico de proximidade permitindo aos pobres aceder quotidianamente a elementos nutritivos»
·         Empresa Solidária: procura maximizar o lucro, mas são detidas pelos pobres ou por pessoas desfavorecidas. A vantagem é que os dividendos e a valorização da empresa beneficiam os pobres, ajudando-os a lutar contra a pobreza ou mesmo escapando dela.


De uma forma mais genérica, diremos que EMPRESA SOCIAL é uma empresa que se dedica à resolução de problemas sociais, económicos e ambientais, tendo como suporte à sua sustentabilidade o modelo de negócio, sendo o seu objectivo social e nãoa maximização do lucro.
Para Yunus, como a pressão não é criar lucros para os accionistas, embora tenha que ter presente a sua sustentabilidade, o leque de oportunidades de investimento para um empresa social será muito mais amplo.
Impulsos subjacentes à criação de uma Empresa Social:
·         Criatividade
·         Empreendedorismo
·         Desejo de tornar o mundo melhor

Relembre-mos mais uma vez as palavras do próprio Yunus:
“…para criar uma empresa social, em primeiro lugar é necessário identificar uma necessidade e adaptá-la às capacidades e aos talentos que se possuem”. 
"Olha o mundo à tua volta e pergunta-te o que te perturba. O que gostarias de mudar? Identifica a origem do problema - qual é a necessidade crucial que tem de ser abordada? Define-a com precisão e aprofunda a questão, não te limitando a arranhar a superfície".



 ALGUMAS QUESTÕES

São várias certamente as questões que se levantam no desenho de empresas sociais e solidárias, nomeadamente quando detidas, como no caso de Grameen, pelos próprios pobres. A primeira questão é se, devido à forte hierarquização e carisma de liderança, se os accionistas têm na verdade uma participação real na orientação da empresa?! Uma segunda questão prende-se com o objectivo da empresa. Uma vez que o seu objectivo é que as pessoas saiam da pobreza, coloca-se o problema de a partir de determinada altura deixarem de ser accionistas. Este problema, o Grameen Bank resolve-o tendo uma perspectiva geracional de desenvolvimento, ou seja, ao tornar obrigatório que as crianças frequentem a escola e ao conceder bolsas para que continuem a estudar, acredita-se que a saída da pobreza se dá através da educação das gerações futuras.

Outra questão prende-se com a conciliação, tendo em conta a organização hierárquica centralizada, entre o local e a eficiência e eficácia empresarial. Importa perceber que este tipo de empresas exigem um elevado grau de profissionalismo, eficiência e eficácia. Por outro lado poderá também correr-se o risco de derivação da missão.

Qual deverá ser o papel do Estado?  Segundo Yunus ao estado cabe o papel de regulamentar e criar as condições necessárias e favoráveis a que este tipo de empresas se desenvolvam. Ao Estado não cabe imiscuir-se na sua governação ou, de alguma forma, procurar o seu controlo, mas deve envidar esforços para que o enquadramento lhes seja favorável.

No que toca ao financiamento, ele deve assentar sobretudo na criação de fundos éticos e solidários que tenham a capacidade de atrair investidores diversos, desde o individual e anónimo até às grandes empresas. Segundo Yunus será mais rentável apoiar empresas sociais do que outro tipo de instituições de cariz mais social e filantrópica. 

Mesmo que se resolva a crise financeira, como todos esperamos, percebemos hoje – e esperemos que outros também o entendam – que o rumo assumido até ao presente dificilmente será viável. O caminho terá que ser obrigatoriamente outro.


Para isso é necessário que exista uma consciência social profunda que nos desafie na procura de respostas inovadoras e criativas. 
O envolvimento na Economia Social e Solidária, nomeadamente a criação de Negócios Sociais é um exercício de cidadania e a afirmação da consciência social.

 ALGUMAS LEITURAS


  • Muhammad YUNUS, «A Empresa Social - A nova dimensão do Capitalismo para fazer face às necessidades mais prementes da Humanidade», Editorial Presença, 2011.
  • Muhammad YUNUS, « Criar um Mundo Sem Pobreza - O Negócio Social e o Futuro do Capitalismo», Difel, 2008.
  • Muhammad YUNUS, «O Banqueiro dos Pobres», Difel, 2002.
Outubro 2011


José Centeio 













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