O SONHO DE ABRIL


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen


Deixo-vos aqui um pequeno texto, embora com algumas alterações, que escrevi há dois anos e que, na altura, partilhei com um grupo bem mais restrito.

Todos nós temos os nossos sonhos e nunca impossíveis, mesmo que não se cumpram. Os sonhos, que não se confundem com desejos, são uma espécie de utopia a cumprir e darão certamente lugar a outros quando cumpridos, deixando, por isso mesmo, de o ser. Também pode acontecer que alguns desses sonhos nunca sejam cumpridos, não por impossíveis, mas apenas porque o nosso tempo é demasiado curto para percorrer tamanha senda. Contudo, isso não significa que não encurtemos a distância, maior ou menor, que nos separa do sonho, da utopia. Cada passo, por mais pequeno que seja, encurta essa distância; e é o desejo de chegar a essa meta – cumprir o sonho – que move muitos de nós, que nos ajuda a resistir e que nos permite criar e construir algo de novo.
Sonhos há que, por demasiados grandes e ousados, exigem muito mais do que a nossa singela – embora imprescindível – contribuição. São construções feitas de pequenos retalhos, mas que adquirem uma harmonia arquitectural a partir do momento que são pertença de muitos e não apenas de alguns. São assim os sonhos colectivos e os sonhos dos Povos. Também os povos necessitam de conjugar esforços no sentido de cumprir utopias, pois só assim conseguirão resistir e construir um mundo que se aproxime do sonho. Aliás, esse é talvez um dos males das nossas sociedades, a incapacidade de encontrarmos utopias que a todos mobilizem. Foi na procura de sonhos colectivos que fui encontrando pessoas com quem muito aprendi e me fui moldando, crescendo e amadurecendo na esperança que um dia se cumpram, mesmo sabendo que disso não serei testemunha. Foi através dessas construções colectivas que fui encontrando uma outra família, que afinal fui trilhando com outros novos caminhos. Como escreveu Roger Garaudi – filósofo francês -, em «Parole d’Homme», livro que marcou alguns homens e algumas mulheres da minha geração, a nossa verdadeira família não é a de sangue, mas aquela que escolhemos por opção.
Alguns de nós foram protagonistas de um sonho colectivo chamado Abril que, passados trinta e oito anos, foi perdendo o que teve de essencial: um sonho colectivo de liberdade, aglutinador de vontades em construir algo de novo, onde todos fossem protagonistas. Uns dirão que Abril se cumpriu, outros ainda que muito do sonhado ainda não aconteceu. Eu direi que se cumpriu a revolução, mas que ainda nos resta cumprir o sonho, porque este importa que continue a ser uma utopia que a todos mobilize. A construção da liberdade, enquanto acto de solidariedade e de respeito pelo outro, será sempre um sonho inacabado e imperfeito que exige de todos nós um esforço constante de construção colectiva.
Tentem ser felizes em seara de gente e tentem cumprir Abril!

ABRIL COM “R”
Trinta anos depois querem tirar o r
se puderem vai a cedilha e o til
trinta anos depois alguém que berre
r de revolução r de Abril
r até de porra r vezes dois
r de renascer trinta anos depois

Trinta anos depois ainda nos resta
da liberdade o l mas qualquer dia
democracia fica sem o d.
Alguém que faça um f para a festa
alguém que venha perguntar porquê
e traga um grande p de poesia

Trinta anos depois a vida é tua
agarra as letras todas e com elas
escreve a palavra amor (onde somos sempre dois)
escreve a palavra amor em cada rua
e então verás de novo as caravelas
a passar por aqui: trinta anos depois.

Manuel Alegre
                                                                                   O FUTURO

Isto vai meus amigos    isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente.

Isto vai meus amigos    isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente.

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos    isto vai.

Ary dos Santos



                               


Foram dias foram anos
a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos.
Foi o tempo que doía
com seus riscos e seus danos.
Foi a noite e foi o dia
na esperança de um só dia.


Manuel Alegre.


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