AS TÉNUES FRONTEIRAS DA DEMOCRACIA!


É tendência do poder ignorar os factos ou então substituir a realidade por palavras na tentativa de ignorar esses mesmos factos. Veja-se, por exemplo, que os problemas (a realidade) praticamente desapareceram dos discursos. Actualmente não existem problemas, mas desafios (o que não existe). Convenhamos que a artimanha até pode dar resultados, perdemos em consciência o que ganhamos em esperança ou expectativas. E com esta artimanha o poder - ou os poderes - ganham tempo e iludem - ou julgam iludir - os pacatos cidadãos nos quais me incluo. Cabe-nos a nós armarmos a ratoeira para tais artimanhas. Vem esta lengalenga a propósito, ou talvez a despropósito, de dois factos que passarei a comentar. Embora na aparência não haja entre eles qualquer relação, na sua essência, apesar de muito diferentes e cada qual na sua dimensão, eles têm pontos que se aproximam. Sublinho, para que não haja qualquer equívoco, a sua dissemelhança no que se refere à dimensão e consequências. Não são por isso confundíveis. 

1. O primeiro destes factos tem a ver com o fumar e o eventual atentado à liberdade, não do fumador, mas dos indivíduos. Para que fique claro: sou fumador e tenho consciência de que este meu vício tem consequências nefastas para a minha saúde; também estou consciente de que esta minha imperfeição tem consequências para terceiros e, por isso mesmo, estou de acordo que me seja proibido tamanho prazer em determinados locais públicos. Nunca me insurgi contra o aumento do preço da nicotina, ao contrário de outros bens, porque penso ser justo. Também não me queixo dos impostos que pago a mais pelo facto de ser fumador. Por norma, não fumo na viatura, o mesmo acontecendo em casa. Feito o acto de contrição, o que eu não posso admitir é que, em nome de um falso moralismo economicista, me venham dizer o que devo ou não devo fazer num espaço que me pertence: a minha viatura. Para quem tanto defende a propriedade privada é, no mínimo, um contra senso. O que faço ou deixo de fazer nesse pequeno espaço não é da conta de terceiros, desde que o meu comportamento não ofenda o que é tido como «moral pública». Confesso que este tipo de fundamentalismo me incomoda e, mais do que isso, acho-o perigoso e escorregadio. Hoje é a proibição de fumar no carro, amanhã será a de fumar em casa e depois será o que essas doutas cabeças entenderem ou o que o seu poder discricionário bem entender! Não é aceitável e não podemos, fumadores e não fumadores - aceitar tais comportamentos. São pequenas coisas sem importância, pensarão alguns; é justo que assim seja face à irresponsabilidade dos pais, pensarão talvez os mais moralistas. O problema é que o atentado à liberdade que a todos afecta começa sempre por pequenas proibições com a aparência de afectar apenas alguns. E como não se trata de um problema, até preferimos dar-lhe outros nomes ou sentidos. Eu prefiro, como aqui já várias vezes escrevi, a responsabilização à proibição; a mudança de mentalidade ao procedimento, à obrigação. Este tipo de fundamentalismo incomoda-me e não é, na minha opinião, coisa de somenos importância.
2. O segundo facto prende-se com o julgamento do «monstro de Oslo». Tratando-se de um crime horrendo, pronúncio de uma verdadeira barbárie, o epíteto «monstro de Oslo» até parece apropriado. O que aconteceu na Noruega em 27 de Julho de 2011, o massacre perpetrado por Anders Behring Breivik, deve ser levado muito a sério e não ser visto apenas como um acto isolado, o acto de um monstro. Não devemos esquecer e dizer aos mais novos o que isso significa, porque não se trata apenas de uma pessoa, mas sobretudo de uma ideologia. Essa mesma pessoa, na sua eventual loucura, poderia partir para um qualquer continente e tornar-se num Francisco de Assis ou numa Madre Teresa da Calcutá, caso a ideologia que está na génese fosse outra. Mas não é outra, mas esta a que se dá o nome de Fascismo. Não tenhamos medo de dizer os nomes. É necessário dar atenção aos factos e não ignorá-los ou tentar adorná-los com palavras ou neologismos. Relembro que a direita de Le Pen começou por pequenos grupelhos no final dos anos 70 a que ninguém dava importância e para cujo avanço Chirac também deu a sua contribuição com slogans do tipo " Il ne devrait pas y avoir de problème de chômage en France, puisqu'il y a un million de chômeurs et un million huit cent mille travailleurs immigrés"  (Le Monde, 19/02/1976). Na altura houve quem avisasse, quem estivesse atento..., mas tratava-se de coisas sem importância numa sociedade democrática. Preferiu-se ignorar os factos ou tratá-los como se disputa política se tratasse.
As fronteiras da democracia são bastante ténues, o que exige de todos uma atenção redobrada e uma exigência sem limites.
Sejam felizes em seara de gente, porque só seremos gente se reconhecermos o Outro como gente como nós, apesar da diferença.

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