DEMOCRACIA AO PÉ-COXINHO

A democracia, à semelhança de outros fundamentos das sociedades, não se instaura apenas por decreto. A sua força depende muito pouco dos decretos, sendo estes não mais do que uma exigência da prática e exigências democráticas. A prática democrática é uma aprendizagem quotidiana que não se compadece com o "faz-de-conta". Ninguém se torna democrata com um simples estalar de dedos. O "faz-de-conta" é confundirmos a vivência num regime democrático - em que os pilares essenciais funcionam - com a prática democrática. Pensarmos que podemos fazer o que nos dá na real gana a coberto desse regime democrático. E quando escrevo isto, estou a pensar na sociedade como um todo, desde aqueles que têm responsabilidades políticas até ao simples cidadão, passando pelos poderes intermédios e poder económico e financeiro. Não é apenas a degradação económica que atinge o país, mas sobretudo a degradação da própria democracia, as quais - ao contrário do que nos querem fazer crer - não datam do último governo. Aliás, algumas das causas dos problemas que agora vivemos radicam bem longe no tempo e terão certamente vários responsáveis, quiçá alguns deles insuspeitos. As tramas que se foram tecendo ao longo das décadas, a promiscuidade entre poderes, a rede de clientelas que se construiu, tiveram como consequência a ocupação por esse clientela - e não apenas dos partidos de poder - de postos e lugares charneira na sociedade, influenciando as decisões políticas, sociais, económicas e financeiras. A lógica, mesmo quando se trata de lugares de grande cunho técnico, é o do clientelismo e a de protecção e defesa do clã e não a do bem comum. Curiosamente, existe na sociedade um fenómeno curioso, uma espécie de socratização da história. No período Sócrates, fruto de um qualquer surto de amnésia colectiva, parecem aglutinar-se todos os males do país e todos os defeitos da classe política, enquanto no período pós Sócrates parece passar-se precisamente o contrário. É verdade que, como diz o povo, ele deu o flanco, mas francamente haja discernimento! Eu suspeito - e não passa de um palpite - que esse fenómeno de socratização deu jeito a muita gente, pois está encontrado o suspeito perfeito (todas as provas parecem estar contra ele) para que outros se mantenham na sombra - como é seu timbre - e possam continuar a espoliar-nos sem que sejam minimamente incomodados. É ainda suposição minha que muitas das aves que por aí se pavoneiam são as mesmas que ora estão nas grandes empresas privadas, ora num escritório de advocacia, ora fazedores de opinião, ora nas empresas de consultadoria e, se possível, com uma perninha num cargo de confiança política ou numa qualquer empresa do Estado, pois sempre dá para compor a mísera reforma! São essas aves, não tão raras como seria desejável, que espoliam o Estado (todos nós) através de contratos extremamente «cuidadosos», consultadorias «imparciais», estudos «bem fundamentados» e toda a sobejidão de propostas que aos governantes pespegam. Diga-se em abono da verdade que a flexibilidade (vira-casacas diria o povo!) é coisa que cultivam há muito, pois tanto servem Fulano como Sicrano, refazendo os mesmos estudos, prestando as mesmas consultadorias, defendendo os mesmos contratos, fundamentado a evolução da opinião... tudo feito à medida de quem contrata. Como hoje estou virado para os palpites, palpita-me ainda que essas são as mesmas aves que, em nome do «menos Estado» e «menos custos», esvaziaram o Estado de competências em áreas essenciais para o próprio ( o menos Estado tem também destas coisas!) e, sem perderem a postura e a compostura, dizem ser o Estado incompetente e os governantes incapazes e inábeis. Suponho - mais um palpite - que esse tipo de aves não terão propriamente cor partidária ou ideologia, mas apenas interesses. Alguns até se dizem independentes, embora eu não entenda bem o sentido que atribuem à palavra, já que me parecem profundamente dependentes. Sobretudo do dinheiro dos contribuintes. E já agora uma pergunta inocente: não cabe ao parlamento fiscalizar?!
Mas também nós somos responsáveis e acabamos por nos espoliarmos a nós próprios ou por omissão, ou por indiferença, ou por comodismo, ou por impotência, ou por cobardia... Sei lá... podem ser tantos os motivos. Quando se ouve nas conversas «Eu cá não tenho culpa, nem sequer votei neles!», isso mostra o quanto a ideia de democracia é distorcida, sintetizando no voto todos os direitos e deveres de cidadania. É importante nunca perder a noção de que a democracia começa em cada um de nós e é aí, nesse acto de consciência, que se começa a desenhar o futuro colectivo.
Não nos contentemos com uma democracia ao pé-coxinho, porque de tanto forçar acaba um dia por ser amputada.
Tentem ser felizes em seara de gente sem esquecer de exigirem uma democracia, não perfeita, mas sempre em construção.

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