A CUNHA: ECONOMIA DE TROCA OU ECONOMIA RELACIONAL?

No mundo do trabalho - e também nos negócios - as relações são um meio importante para atingir determinados objetivos. É assim no nosso país como em qualquer outro. A única coisa que muda é a cultura que sustenta esse tipo de relações e as regras - ou ausência delas - pelas quais se regem. Porque na verdade todas as relações, mesmo as mais próximas, se regem por regras, implícitas ou explícitas. A este tipo de relações há quem lhe chame «capital relacional» ou «capital social», que não o capital social a que as empresas estão obrigadas. É também por essa razão que a situação dos desempregados, sobretudo dos desempregados de longa duração, é ainda mais dramática, pois perderam parte desse capital relacional. Pela mesma razão pessoas há que preferem estar no mercado de trabalho em situação de desvantagem, ganhando menos ou até, às vezes, com prejuízo financeiro. Esperam ganhar em capital social o que perdem em capital financeiro, esperando receber mais tarde, com juros acrescidos, esse seu "investimento". Pelas mesmas razões, embora em sentido contrário, alguns recusam o emprego que lhes é proposto, já que ao fazerem as contas - à vida e a necessidades bem mais comezinhas - percebem que os ganhos não compensam as despesas que implicam: guarda dos filhos, transportes, refeições, outro tipo de roupa... Para quem tem necessidades imediatas e parcos recursos financeiros é difícil entender a importância em estar inserido no mercado de trabalho, mesmo aceitando condições de desvantagem, e o quanto a exclusão dele significa hipoteca do próprio futuro.

Ao olharmos para esta realidade, percebemos o quanto os discursos políticos revelam de desconhecimento desta realidade e das opções que estão subjacentes a determinadas opções. Desconhecimento ou falta de sensibilidade a uma realidade que desconhecem ou ainda devido a uma construção teórica preconceituosa. Se para alguns é admissível aceitar emprego em situação de desvantagem, essa opção radica na  expectativa fundada de serem capazes de potenciarem o seu capital relacional e daí retirarem dividendos com juros acrescidos. Para outros, ao contrário,  as necessidades são tão prementes e o esforço hercúleo quotidiano para sobreviverem é de tal forma, que aceitar emprego nessas condições seria, na sua perspectiva, um perfeito suicídio. Como o seu capital relacional é mínimo (por não possuírem as competências  exigidas pelo mercado de trabalho) e funciona em círculo fechado (dificuldades em romper o círculo da exclusão) , a aceitação de emprego em situação de desvantagem cria neles um sentimento de revolta ainda maior por se sentirem espoliados. Ao avançarmos na cadeia hierárquica do poder económico percebemos que também aí se funciona em círculo fechado, embora as razões sejam bem diferentes do que acontece nas camadas populacionais mais desprotegidas. No caso, o círculo funciona como forma de proteger os interesses próprios e continuidade de uma promiscuidade entre poder político e económico aceite por todos - ou no mínimo tolerada - já que todos daí esperam retirar dividendos.
Dito isto, qual a importância do "capital social" e por que razão lhe atribuímos nós um sentido tão negativo?  Na verdade, parece-me que esta cultura é própria, por um lado, dos povos a quem negaram direitos básicos de acesso a bens e serviços ou, no mínimo, os tornaram de difícil acesso às camadas populacionais mais distantes do poder e, por outro lado, ao exercício da autoridade através da afirmação do poder e não fundado no saber e serviço à comunidade a que se pertence. Enquanto o poder nos é conferido ou é usurpado, a autoridade é uma construção relacional. É minha convicção de que a negação de direitos e a afirmação do poder da parte de quem possui os meios  teve como consequência o enraizar de uma cultura e de uma prática que fazia depender o acesso a determinados bens e serviços de atitude de subserviência ou troca de favores. Esta atitude à transversal a toda a sociedade portuguesa. O funcionamento em círculos fechados impede que haja comunicação com o que lhes é exterior, impede observação a partir do exterior, ou seja, impede que exista transparência. Tudo se passa como se de um mundo semi-secreto se tratasse. A existência da cunha - tal como a entendemos - impede que se desenvolva o capital relacional e se ganhe consciência social, o que só é possível se se romperem os círculos. Entendemos a cunha, não como uma economia relacional, mas como uma economia de troca balizada por um mercado concorrencial. Tratando-se de uma economia de troca num mercado concorrencial, ela é sempre percepcionada como um negócio entre partes, uma espécie de «pacto de sangue», que torna as partes interdependentes (quando do mesmo círculo) ou ficando uma delas em posição subserviente (quando entre círculos diferentes).
A cunha, enquanto capital relacional, é uma forma de abrirmos portas, de alargarmos os nossos horizontes, e não o meio para nos sentarmos à mesa para a qual não fomos convidados ou tomarmos posse do que não nos pertence. 
Essa forma de estar enraizou-se de tal forma em toda a sociedade que as suas consequências, por exemplo, no meio laboral, inquinam por completo o capital relacional. As cunhas podem servir para abrir brechas, separar as partes do todo, mas servem também para equilibrar, estabilizar, impedir que haja desmoronamentos. A sua utilidade depende apenas da utilização que cada um de nós lhe dá, ou seja, se valorizamos o nosso capital social ou se, pelo contrário, o corrompemos.
Metendo algumas cunhas no sítio certo e rompendo círculos, tentem ser felizes em seara de gente. E já agora tentando construir uma economia relacional e não uma economia de poder.

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