MAS QUE DEMOCRATAS PARIU A DEMOCRACIA?!

Verdade seja dita, o país está salvo, pois à boa maneira portuguesa – à boa maneira latina – está encontrado, e não é de agora, o verdadeiro culpado da crise. Não existem responsáveis, mas apenas um culpado: José Sócrates. Aliás, é típico do comportamento latino, herdeiro de uma determinada interpretação da tradição judaico-cristã e do direito romano, confundir culpa e responsabilização. É sempre mais fácil, porque a culpa é sempre de terceiros (mesmo os não identificados), enquanto a responsabilização radica, em primeiro lugar, no próprio, ou seja, em nós. A responsabilização assusta, porque é bem mais fácil condenar do que se questionar e tentar perceber os acontecimentos. Além disso, a consciência (que não temos) fica bem menos pesada quando encontrado o culpado. Vieram todos felizes na mesma casa, foram mesmo vendendo a mobília e até os vários cantinhos da casa a troco de quimeras sebastiânicas e quando quase nada restava… quem fechou a porta…

1. PETIÇÃO CONTRA SÓCRATES NA RTP

“A petição deu entrada na Comissão de Ética, mas acabou nos Assuntos Constitucionais. Os subscritores dizem recusar a presença do ex-primeiro-ministro na RTP, por ser paga com o dinheiro dos contribuintes, e por considerarem que houve "gestão danosa" por parte de José Sócrates no exercício do cargo.” Porque será que se indignam tanto com a presença de José Sócrates e se calam com outras presenças? É verdade que José Sócrates não terá sido um exemplo de governação (mas quem foi?!), mas pretender que ele seja o ode expiatório de todos os males é cegueira, malvadez ou crime premeditado. Imagino que alguns desses sejam os mesmos que bradam contra a interferência do poder na RTP, mas que se julgam no direito (eles lá saberão as razões) de eles próprios decidirem quem deverá ou não o mesmo canal contratar. Se é esta a ideia que têm de democracia e de liberdade de expressão, não, obrigado. Quando se transforma a realidade nos nossos próprios desejos – irónico, porque era uma das acusações a José Sócrates – perde-se a capacidade de análise e de leitura da mesma realidade. E todos sabemos – pelo menos alguns – que quando esse comportamento é poder e outros abdicam de o controlar, a tirania anda por perto.

2. CRIMINALIZAÇÃO DA GESTÃO POLÍTICA

“Responsabilizar criminalmente os políticos que conduziram o país à situação de crise, sim ou não? O debate foi lançado pelo líder da JSD, Duarte Marques, mas as opiniões divergem.” Não será difícil de adivinhar que o alvo continua a ser José Sócrates. E todos os outros? E as empresas, e os gestores, de quem alguma desta gente é «afilhada»?! E os governos anteriores? Ou será que o País chegou onde chegou em apenas dois anos? E quem permitiu que chegássemos aqui? Será que esta maltinha não distingue o que é responsabilidade criminal e responsabilidade política? E em que lugar ficam os líderes europeus? Uma coisa é dolo, outra incompetência, más opções, más decisões. Confundir tudo isto em nome do controlo democrático, sobretudo quando se é parlamentar, é passar-se a si próprio um atestado de incompetência. Isto para não dizer outros nomes ou parecer mal educado. Esse caminho apenas conduziria a uma maior fragilização da democracia e do poder (o que daria muito jeito a alguma gente…) e a um número de processos sem fim, dependendo de quem estivesse no poder. Pretender transferir o exercício do poder político para o controlo do poder judicial, é dizer aos cidadãos que devem abdicar do exercício de cidadania, nomeadamente do combate político quotidiano, seja ele em que campo for.

 Quando pessoas irresponsavelmente com responsabilidade, alguns paridos pela democracia e outros por ela adotados, têm voz, não porque mereçam mas porque lhes foi emprestada para que digam umas parangonas, ou porque os meios de comunicação lhes afagam o narcisismo, ou ainda porque serão eternamente coxos e há sempre quem se divirta com o espetáculo, é sinal de uma democracia profundamente doente em que os cidadãos confundem os poderes, em que abdicam do direito do exercício da cidadania e do combate político – que não é apenas partidário, mas um exercício quotidiano de aprendizagem – e preferem delegar em terceiros o combate que lhes cabe. É pena, é triste, que havendo tanta coisa importante para discutir, havendo tanto para construir e tantos sonhos por cumprir, haja quem se entretenha (e com isso arraste outros) com coisas laterais não percebendo o fundamental: os políticos fazem o que fazem porque somos pouco exigentes, porque nos contentamos com o suficiente, porque apenas somos solidários na desgraça (falta-nos consciência social), porque delegamos o nosso futuro nos outros. E quando as coisas acontecem, quando estamos realmente à rasca, optamos pelo mais fácil: encontrar o culpado. E assim, dormiremos muito mais descansados. UFF! Que alívio.

Não esqueçam:

“Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde.”

Sejam felizes em seara de gente.

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