CONSENSO: AMPUTAÇÃO DA DEMOCRACIA?

Há já alguns anos participava eu numa reunião internacional quando fui surpreendido pela ousadia de um dos participantes que defendia uma espécie de teoria do não-consenso como forma de aprofundamento da democracia. Dizia ele que o problema é que tínhamos sido treinados e habituados a tomar decisões por consenso em detrimento do não consenso. Esta ideia ficou-me registada na memória e várias foram as vezes que a ela voltei, embora esbarrando sempre na dificuldade em ultrapassar a diversidade do não consenso enquanto legitimação de uma decisão. Na verdade, o consenso parece ter-se instituído como medida da qualidade das nossas democracias. Atente-se nas comparações entre a crise grega e a crise portuguesa e a importância da existência ou não de consenso entre as partes políticas. O consenso minimiza o risco da explosão social. Ao contrário, parece haver pavor do não consenso (desconsenso!), da afirmação da diferença e da discordância. Contudo, é na afirmação da diferença, na diferenciação e na exposição da discordância que é possível inovar e construir novos futuros. Eu arriscar-me-ia mesmo a dizer que os futuros inovadores, quaisquer que tenham sido, surgiram sempre do rompimento com a arte do consenso. É precisamente no não consenso que se constroem pontes entre as margens, apesar de, não raras vezes, a leitura seja feita como se de consenso se tratando. Se tentássemos aproximar as margens ao ponto de as juntar, o rio deixaria de existir e, assim, além do rio, perderíamos o encanto que  é de uma margem poder contemplar a outra.
A grande questão está. como nos diz Patrick Viveret, de "como é que um cidadão, por formar o seu próprio juízo, é levado a entrar em relação com o outro? É aí que a democracia se alimenta ontologicamente, no seu próprio ser, da pluralidade, da diferença, até da divergência. O conflito torna-se uma alternativa à violência, a construção dos desacordos torna-se um elemento decisivo do progresso do conhecimento numa colectividade". Assim, para Viveret, a "evolução das relações de poder obriga-nos a pensar a mutação qualitativa da democracia, isto é, da cidadania, que se caracteriza pela qualidade da formação do juízo e não se limita à agregação de opiniões, estados de espírito e paixões". Assim, a verdadeira medida para aferir da qualidade de uma democracia não radica nos consensos obtidos, no número de votantes ou na paz social adquirida, mas na qualidade dos juízos dos cidadãos. Dito de um modo mais corriqueiro, na sua consciência crítica e na sua consciência de cidadania, pois só elas permitem construir pontes sem a tentação de pretender aproximar as margens. As pontes, ao contrário do que nos dizem, não servem para unir margens, mas para estabelecer a comunicação entre elas. O que é, na minha visão, algo bem diferente, já que o que se pretende não é o desaparecimento do rio que as separa, mas como comunicar entre elas apesar do rio.
As democracias não existem sem a perspectiva relacional, o mesmo será dizer, sem a capacidade de comunicarmos entre margens apesar do rio.
Sejam felizes em seara de gente tentando criar pontes entre margens e resistindo ao desejo de acabar com o curso do rio.
(Patrick Viveret, filósofo, foi Conselheiro no Tribunal de Contas e teve como missão, no governo de L.Jospin, a redefinição dos Indicadores de Riqueza. O artigo «Que vamos fazer da nossa Vida? faz parte do livro «Como Viver em Tempo de Crise», Edgar Morin e Patrick Viveret, Imprensa Nacional - Casa da Moeda)

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