Rui Pinto e o Interesse Público
Não gosto de justiceiros, nem de quem se julga moralmente superior. Também não penso que tais atitudes possam servir a democracia. O que se arvoram em justiceiros não fazem justiça, aplicam a ideia que eles fazem da justiça, de acordo com os seus valores, preconceitos e visão sobre o mundo e sobre a realidade. Acontece que a justiça e a sua aplicação nas sociedades democráticas são bens coletivos e não individuais. São o distintivo dos valores, morais e éticos, que a sociedade como um todo defende e pratica. Os eventuais desvios são apenas exceções e nunca se podem constituir em regra. Essa forma de olhar é própria das ditaduras, das sociedades destruturadas, sem lei e onde o Estado de Direito é substituído pelo vazio.
Não olho para Rui Pinto como um herói, mas também não o vejo como um bandido da pior espécie. Importa colocar as coisas no seu devido lugar e tentar entender a realidade de hoje, sobretudo quando mediada pelas redes sociais e pelos meios tecnológicos hoje massificados. Ao contrário de muitos, porventura a grande maioria neste momento (basta olhar para as redes sociais) penso que o perigo e o risco que ele representa para a democracia é maior do que os benefícios que dos seus atos ilícitos possam resultar. A negação desse risco seria que daí resultasse uma maior consciência de cidadania e da necessidade do seu exercício, que nos tornasse mais vigilantes, mais exigentes, mais empenhados e mais atuantes. Mas não me parece, infelizmente, que seja isso que esteja a acontecer. O conhecimento da realidade não resolve, por si só, os problemas nem é solução para o que quer que seja. O conhecimento da realidade é apenas o ponto de partida para uma maior exigência de cidadania da parte de cada um e de cada uma e de todos e de todas, enquanto coletivo. A pergunta que cada um de nós se deve colocar é: O que eu posso fazer (ou o que não devo fazer) para evitar que certo tipo de crimes, nomeadamente os de corrupção, aconteçam?
Olho para as democracia como sendo uma construção suportada pelo Estado de Direito e não como uma construção suportada por mercenários, por mais compreensivas que possam ser as suas causas ou até as boas intenções que lhes possam ser subjacentes. Sobre as intenções não pretendo, não quero, tecer qualquer juízo de valor, mesmo que sobre o assunto possa ter uma opinião. Mas essa será sempre subjetiva e especulativa, apesar dos factos. O que me importa é afirmar e defender uma democracia onde não me sinta ameaçado por um qualquer mercenário informático, cujos interesses e intenções desconheço, mas que serão sempre os seus e as suas, sejam quais forem e independentemente da bondade, e não os da coletividade. Eu quero, defendo, uma democracia que me proteja e defenda e que possa confiar no Estado de Direito que a suporta, sobretudo quando me possam ser apontadas falhas, prevaricações ou comportamentos desviantes. Se eu quero, se eu desejo, uma democracia que me proteja tenho o direito - e esse é também um dever de cidadania - de exigir que sejam dados os meios a quem é suposto proteger-me e defender-me. Exigir os meios é também lutar, de forma organizada e lícita, contra quem prevarica, contra quem usa os meios à sua disposição para enfraquecer a democracia, contra quem nos nega o direito de uma sociedade mais justa porque se apodera indevidamente de recursos, contra quem utiliza o poder não para servir, mas para dele retirar vantagens em proveito próprio.
Não deixa de ser curioso que muitos dos que agora desculpam Rui Pinto e o olham como um herói, e aqui incluo a comunicação social, não desculpariam (e bem, digo eu) se as entidades a quem cabe investigar e julgar utilizassem os mesmos métodos e comportamento. Rui Pinto não é um denunciante, uma vez que teve acesso à informação não pelas vias normais devido às funções que desempenhava, mas pela via ilícita e por seu próprio interesse ou curiosidade. E, na minha opinião, não se trata de uma questão de semântica ou jurídica, trata-se no essencial de evitar e legitimar a devassa da vida privada e também das instituições democráticas. O ponto de partida, neste e em casos semelhantes, não é o interesse coletivo. Qual o motivo inicial? Quanta informação privada violou (gente inocente, que posso ser eu ou você) até descobrir o que lhe interessava? A investigação feita pelas autoridades ao dar determinados passos estes obrigam à autorização de um Juiz. É isso o Estado de Direito. Quem autorizou Rui Pinto? Quais as motivações iniciais? A intromissão começa sempre por ser aleatória, sem qualquer critério objetivo no que toca ao fim, e movida por interesses não transparentes. A descoberta de eventuais crimes aparece à posteriori atingindo ou coscuvilhando na passada informação sem interesse para o objetivo, mas que não sabemos como poderá ser utilizada.
O problema não é, como há quem diga, "quem não deve, não teme", porque se eu não devo, não temo, mas não concedo a qualquer um o direito, só porque lhe apetece ou por qualquer outro razão de gosto ou interesse, de me espiolhar e me expor de acordo com os seus interesses e padrões e não os de um Estado de Direito. Se sentimos e percebemos que as instituições não funcionam e não nos defendem, há que exigir que o façam e encontrar os mecanismos que tornem efetiva essa exigência, esse é um direito que nos assiste, mas também um dever de exercício de cidadania.
Este julgamento vem colocar às instituições democráticas várias questões e desafios, para os quais teremos, enquanto coletivo, de encontrar respostas, mas nunca deixar que as soluções fiquem à mercê de interesses particulares, por mais bondosos que possam ser ou parecer. Importa perceber que o tempo da justiça (e aqui nada tem a ver com morosidade) não é o mesmo que o dos autodenominados justiceiros. O da justiça é o tempo do respeito, da lealdade, dos direitos; o tempo dos justiceiros é o do acerto de contas, da vingança, do não respeito pelo outro.
Quando fazemos cedências, confundimos ou invertemos papéis, estamos a colocar a democracia em risco, sobretudo porque facilmente perdemos o pé.
Apostar em heróis ou num qualquer D. Sebastião como solução para os nossos males, é demitirmo-nos enquanto cidadãos e admitirmos a nossa incapacidade enquanto coletivo para construirmos futuro.
Tentem ser felizes em seara de gente.
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