QUANDO O ESTADO SE COMPORTA COMO MELIANTE

Não entendo nada de leis e ainda menos da complexa rede que as interliga. Pese embora a minha ignorância, ensinou-me a experiência que os compromissos assumidos, mesmo se plasmados em contrato, assentam sobretudo na confiança entre as partes e em valores comuns que defendam. Daí decorre que os contratos são para cumprir, pois assim manda a honra de cada um e a honra de ambas as partes. Eu ainda faço parte daqueles que, durante a sua infância e juventude, ouviram e viram pessoas fazer negócios e assumir em compromissos sob «Palavra de Honra». A palavra de alguém era sagrada e quem a ela faltasse estaria condenado ao isolamento, pois eram pessoas sem palavra e, por isso mesmo, pouco confiáveis, não merecedoras de crédito. Quando, por qualquer razão ou motivo provados, se tornasse necessário alterar o compromisso assumido, isso era sempre feito com a colaboração e bom senso de ambas as partes. As sociedades tornaram-se mais complexas e daí resultou a necessidade de plasmar em contrato escrito o acordo assumido entre as partes. Contudo, isso em nada deveria invalidar o facto de a Palavra de Honra continuar a ser o «selo branco» dos contratos. Infelizmente esse foi um valor que se foi perdendo e substituído pelo poder, seja económico, social ou outro. Assim, e apesar do objectivo do contrato ser outro, a esgrima de argumentos favorece os detentores de maior poder em detrimento dos mais fracos. Aliás, a marinha mercante ainda funciona muito na base da Palavra de Honra, já que, face às imensas burocracias e à internacionalização dos transportes, dificilmente seria possível de outra forma. Existe uma espécie de Código de Honra e se problemas houver, existe o Tribunal Arbitral de Londres.
Esperar-se-ia que o Estado, como pessoa de bem e defensor dos seus cidadãos, continuasse fiel a determinados valores que continuam a ser o sustentáculo de uma Sociedade socialmente coesa. Assim, caso necessário fosse proceder à alteração dos contratos em vigor, esperar-se-ia do estado, enquanto pessoa de bem, que respeitasse a outra parte e não se arrogasse o direito de, unilateralmente, proceder ás alterações, mesmo se do seu ponto de vista fundamentais.
Entendo, e até posso compreender, que existam razões profundas que obriguem a alterações do estipulado, mas não é admissível que o Estado, enquanto pessoa de bem, atropele valores fundamentais em nome de um desígnio que nada tem a ver com respeito ou com o futuro sustentável, tratando-se de uma mera meta contabilística. Um Estado que perde os seus valores ou os ignora em nome de falsos desígnios, é um Estado condenado ao risível e à degradação moral que, a prazo, abrirá as portas a autoritarismos e a falsos profetas.
Vem tudo isto a propósito do que nos últimos três anos se tem passado e da forma como o Estado, em nome de metas contabilísticas e mercantis, condena um povo à miséria e à servidão. Um dia a História os julgará, mas até que o tempo histórico, muito diferente do nosso, se encarregue de tão árdua tarefa, cabe-nos a nós cidadãos cumprir o nosso dever de cidadania e exercer os nossos direitos democráticos. Não queiramos que nos atirem á cara a frase, tantas vezes repetida, «Têm os governantes que merecem», porque cada um de nós e enquanto colectivo merecemos muito mais.
Uma última nota sobre a guerra que Passos abriu contra o Tribunal Constitucional ao ponto de dizer: «Temos que escolher melhor os juízes...» (entenda-se do Tribunal Constitucional). Traduzindo, o que ele na realidade disse - ou gostaria que assim acontecesse -, foi «Temos que escolher juízes que façam o que nós mandamos». Esqueceu que o poder judicial é independente - apesar dos 13 juízes, 5 serem escolhidos pelo PSD, 5 pelo PS e apenas 3 pelos seus pares. E já agora, o que ele bem gostaria é que todos os que são contra pudessem ser «bem escolhidos»! Isto faz-me recordar outros tempos... não dignos de lembrança. O problema de Passos Coelho não é o tribunal Constitucional, mas a própria Constituição, tal como para qualquer  Para ele devia ser uma Constituição à sua medida; melhor dizendo, era melhor que não existisse.
Acabámos de saber que, à semelhança do caricato e típico Chico Esperto Saloio, que o governo transformou o que era supostamente extraordinário em permanente, ou seja, a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) passou a Contribuição de Sustentabilidade (CS), esta agora permanente e definitiva. E assim se faz a reforma da Segurança Social, tornando-a sustentável, de um governo de princípios e no qual se pode confiar. Quem lhes terá ensinado o significado da palavra «reforma»?
Sejam Felizes em Seara de Gente.

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