ENFERMEIROS - UMA GREVE CONTRA SI PRÓPRIOS


A greve dos enfermeiros veio introduzir algumas mudanças sobre as quais valerá a pena reflectir. Não sei se têm ou não razão ou se esta estará apenas de um dos lados. Imagino que tenham as suas razões e estas devem ser respeitadas. Contudo, o respeito pelas suas razões não significa que a verdade esteja do seu lado. Ou apenas do seu lado. A realidade tem sempre leituras diversas dependendo das fundamentações da sua interpretação. Aliás, e não será despiciendo, as suas razões serão porventura semelhantes às de outras classes profissionais e quiçá com um grau de urgência menor. Nem mais nem menos justas, nem mais nem menos urgentes. 
Sendo a greve um direito cujo exercício implica sempre perturbações, incómodo e prejuízo para terceiros - se assim não fosse não teria grandes efeitos -, importa fazer um balanço entre os benefícios para os próprios e prejuízos para terceiros, pois só assim o exercício do direito encontra justificação. Daí que uma greve, qualquer que ela seja, deva ter em consideração, por um lado, a razoabilidade das reivindicações e, por outro, a sua distribuição no tempo.
Aproveitar o poder que se tem enquanto classe profissional tentando retirar dividendos da fragilidade de terceiros (no caso os doentes), é um caminho que a prazo terá custos para os próprios. Como diz o povo "Quem tudo quer, tudo perde". Parece-me pouco razoável que, após algumas conquistas importantes no que toca à carreira, tenham agora enveredado pela irracionalidade e completa falta de senso: vencimento de entrada na profissão de 1 600 euros e reforma aos 57 anos. Pior ainda, a posição de pretenderem equiparar-se aos médicos - no caso os internos - passando uma borracha pelo que é a formação de uns e de outros. E, já agora, uma pergunta: quem atribui aos enfermeiros, e em que condições e com que critérios, o título de "enfermeiro especialista"? E especialista em quê? Desculpem a minha ignorância, mas estão definidas as especialidades em enfermagem? Quais os anos de formação para se aceder à categoria de especialista? Poder-se-á discutir as tarefas de uns e de outros, mas pretender equiparar-se, mesmo se no vencimento, ao médico não é mais do que estabelecer a confusão, uma guerra inútil mas que deixa marcas, e contribuir para a degradação dos serviços e mau ambiente entre classes que obrigatoriamente devem colaborar entre si. A questão da idade da reforma, nos dias de hoje, é ainda mais anacrónica. Aceito e estou de acordo que a partir de determinada idade haja tarefas que se deixem de fazer e que se passem a fazer outras. Trata-se de gerir os recursos disponíveis de acordo com as capacidades de cada um, mas pretender uma situação de privilégio demonstra o quanto estão distantes da realidade da maioria dos cidadãos que dizem respeitar.
Também a forma da greve, ou seja, greve contínua parece desajustada e, diria mesmo, raiando a irresponsabilidade. Imaginem que os funcionários que processam os seus salários adotavam o mesmo tipo de greve? Que diriam os que agora se arrogam o direito de, em nome de reivindicações pouco sensatas, desprezarem as necessidades de quem deles necessita?
Uma das questões que se levantou, legítima, prende-se com o financiamento da própria greve. Não havendo nada que impeça o recurso ao crowdfunding é contudo lícito exigir maior transparência para que todos percebamos se existe ou não financiamento camuflando outro tipo de interesses. Todos sabemos que parte da saúde privada é paga pelo sector público, o que, e não sejamos ingénuos, é natural que se movimentem interesses do sector privado. Não significa que assim seja, mas como diz o povo "cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém". Pessoalmente, e com base em factos de campanhas anteriores, parece-me ser evidente que esta greve está a ser paga com o objetivo dela retirarem dividendos.
Quanto à Ordem dos Enfermeiros, quando a sua bastonária se envolve e toma partido na greve dos enfermeiros, perde credibilidade e autoridade para desempenhar um papel de mediação entre a classe e os decisores defendendo dessa forma a classe que representa. Pouco me importa que a Ordem tenha ou não ultrapassado as suas competências, o que sei ser uma evidência é que a sua bastonária tem tido um comportamento que não me parece ser condizente com a função que desempenha.
Já agora, não entendo que quem na praça pública tanto vociferou contra a redução para 35 horas, esteja agora tão silencioso no caso dos enfermeiros. Porque será?!
Finalmente, importa sublinhar que a degradação do Serviço Nacional de Saúde tem sido crescente e que é urgente atalhar caminho. Contudo, importa ter claro que, ao contrário do que por aí gente responsável diz, não tem havido desinvestimento financeiro na saúde. O que acontece é que a saúde tem custos cada vez mais elevados o que implica um aumento crescente de despesa sem deixar grande margem para outros investimentos. E nesse sentido, importa fazer escolhas e tomar opções e não me parece que a obsessão pelo défice - imposto pela Europa - seja a mais razoável e o melhor caminho. Mas há outras escolhas sobre as quais importa reflectir e discutir. Estamos a chegar a linhas vermelhas abaixo das quais não será possível a prestação de serviços com uma qualidade mínima exigível.
A defesa do Serviço Nacional de Saúde é responsabilidade não apenas de todos os profissionais nele envolvidos, mas também um exercício de cidadania que a todos diz respeito e que a todos deve envolver.
Uma pergunta ingénua: porque será que enquanto o SNS se degrada o sector privado da saúde prolifera? Será que quando as coisas correm mal no privado ou o seguro se esgota e o doente é enviado para uma unidade pública são pedidas contas à entidade privada que o enviou? Sabemos que o Estado paga aos privados, mas será o contrário verdadeiro?
Tentem ser felizes em seara de gente.

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