ABUSOS SEXUAIS DE MENORES: TSUNÂMI NA IGREJA

Este é um artigo um pouco, ou muito, diferente do habitual, mas senti-me na obrigação e no dever de o escrever e de o partilhar. Não apenas pela revolta que este vendaval me causou, sobretudo pela omissão da igreja, mas também pela hipocrisia que por aí circula de quem, através deste vendaval, pretende lavar a sua própria consciência.
Podemos ou não ser católicos, podemos ou não acreditar, podemos até desconfiar da bondade da igreja, mas não podemos negar a coragem do Papa Francisco em enfrentar o problema e de afirmar, de forma muito clara, que é tempo de limpar e arrumar a casa. Sabemos que não irá tudo resolver, mas este foi sem dúvida um grande passo, sobretudo porque  feito de forma aberta e transparente e não no secretismo dos corredores do Vaticano. Sendo católico - sobretudo cristão - sou daqueles que não acredito na mudança das instituições sem que as pessoas mudem. As instituições, sejam elas quais forem, são espaços de poder onde se tecem relações que cimentam ainda mais o poder tornando-o, muitas vezes, órfão de qualquer tipo de controlo. A Igreja não é diferente. Por isso, apesar do passo importante, caberá às igrejas locais e às comunidades darem os próximos passos. Se assim não acontecer de pouco valeu esta cimeira.
Este é o tempo das vítimas. E sê-lo-á até à eternidade, pois não há tempo que baste para curar feridas tamanhas. Nem tempo nem justiça que repare tamanha violência, pois por pesadas que sejam as condenações, para as vítimas, elas nunca serão suficientemente justas. Este é o tempo das vítimas, mas não por mera questão de retórica ou de alinhamento com o politicamente correto. É o tempo das vítimas porque é obrigação, é dever, da Igreja de estar próxima dos que sofrem. Trata-se antes de mais de uma exigência evangélica. O tempo do clero, da Igreja, chegará, mas este é o tempo daqueles e daquelas que sofreram na pele, no corpo e na alma as violações de quem tinha obrigação e o dever moral de os e de as proteger.
Primeiro: é tempo de escutar as vítimas, de as acolher, de lhes dar espaço e um verdadeiro apoio. De lhes mostrar que a sua vergonha não é culpa, mas antes coragem na transformação de uma igreja que se pretende e deseja próxima dos que sofrem. Esta escuta não deve esquecer os gritos silenciosos sufocados pela dor e pela vergonha. Espero que as igrejas locais não percam tempo e comecem essa tarefa já.
Segundo: sejamos claros e para que não haja dúvidas: o abuso é crime (crime público em alguns países), mas também é crime a omissão, o esconder ou tentar proteger que m cometeu o crime. No caso de se tratar de crime público outros o poderiam denunciar e caberia às autoridades tomarem em devida conta essas queixas. Trata-se certamente de um grande pecado, mas é, antes de mais um crime. Reconhecê-lo é dizer à sociedade que, enquanto igreja, nâo pretendemos silenciar o inaceitável.
Terceiro: tratando-se de um crime, cabe à justiça e não há igreja o julgamento de quem cometeu o crime e daqueles que, por omissão, o esconderam. Este é também o tempo da justiça, o tempo do pecado virá depois.
Quarto: há que fazer, de uma vez por todas, uma investigação séria e um levantamento exaustivo do que aconteceu nas últimas décadas. Não se pode, não se deve, alimentar a polémica aos pedacinhos, pois isso apenas adia a resolução do problema e torna ainda o processo mais angustiante para as vítimas.
Quinto: é imprescindível que as igrejas locais não estejam à espera dos normativos gerais e, rapidamente, actuem ao nível local. Se não o fizerem as vítimas deixam de acreditar que, de alguma forma, possa ser feita justiça.
Sexto: aos que cometeram crime, e independentemente da justiça civil, há que aplicar as devidas sanções, ou seja, devem ser excomungados e expulsos do clero. Não da igreja, enquanto povo e comunidade (não devem ser votados ao abandono), mas da sua qualidade de representantes. Seja a que nível for. E isto é válido para os praticantes como para os que omitiram tais práticas.
Passado o tempo de justiça, virá o tempo de igreja, do pecado. E aqui há um longo caminho a percorrer atravessado por muitas questões que também elas atravessam a igreja. Quem, como eu, passou pelo Seminário, sabe que questões como a sexualidade e a afetividade raramente eram afrontadas de forma clara e direta. Isto em nada questiona a minha enorme gratidão pelo muito que aprendi, mas reconheço que nem todos os que passaram pelos seminários sararam as suas feridas e resolveram as suas contradições.  Como há bem pouco tempo confessava um padre, meu professor nos tempo de seminário: "Tínhamos o saber e não nos faltava empenhamento e esforço, mas faltava-nos tudo o resto". É que também muitos desses padres, alguns muitos jovens, eram lançados às feras sem grande preparação. E quem é pai sabe que nem sempre é fácil lidar com adolescentes. Há pois outras questões que atravessam a igreja, como, por exemplo, o celibato, homosexualidade, os filhos de padres (também aqui existe a violação de privar as crianças da presença do pai impondo a saída do sacerdócio).
Enquanto cristão, gostaria que o tempo do pecado fosse também tempo de perdão, pois não existe apaziguamento ou inclusão sem perdão ("Quem nunca pecou que atire a primeira pedra"). Esta é a parte difícil que julgo não acontecerá, mas que eu desejaria fosse possível. Primeiro que aqueles que cometeram os crimes (diretamente ou por omissão) tivessem a coragem e a humildade de pedir perdão nas suas próprias comunidades. E, por outro lado, desejaria que houvesse essa capacidade do perdão. Perdoar não é esquecer, ou fuga à justiça, mas o reconhecimento do pecado (por mais hediondo que seja) e o não abandono, seja em que circunstâncias for. Este é um outro plano que para alguns pode ser sem significado, mas que permite o apaziguamento das comunidades e a construção do futuro. O esquecimento é como espezinhar a nossa humanidade, perdoar é enaltecer o que de melhor há na humanidade, é a esperança num futuro, mesmo para as vítimas.
Finalmente, não sejamos hipócritas ao ponto de ficarmos satisfeitos por termos encontrado um bode expiatório - a igreja - que nos deixa tranquilos e passa uma esponja pela nossa responsabilidade de cidadãos e cidadãs. Os abusos de crianças é um flagelo da sociedade, seja os abusos sexuais, a pornografia infantil, a prostituição, o bullyin cibernético, o recrutamento para as guerras, o tráfico de órgãos... A igreja , que deveria ser uma autoridade moral e protetora, foi apanhada por este vendaval e daí devem ser retiradas consequências, mas importa ter claro que também os estados têm responsabilidades e também cada um de nós, enquanto cidadão ou cidadã, tem responsabilidades.
Tentem ser felizes em seara de gente.

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