REVOLUÇÃO DO DINHEIRO SOLIDÁRIO

O poder emerge entre os homens quando atuam coletivamente (Hannah Arendt)
A função primordial dos bancos é a de coletar poupanças na comunidade e utilizá-las para fazer empréstimos à comunidade. Trata-se de um serviço de proximidade e de dinamização da economia local e não, como acontece, o alimentar a avidez dos acionistas. È por isso que a nomenclatura anglo-saxónica distingue a banca de retalho (retail banking) – dirigida essencialmente aos particulares, profissionais liberais e pequenas empresas – , da banca de negócios (wholesale banking) – destinada às médias e grandes empresas. Para além deste tipo de bancos, existem os chamados bancos de investimento (investment banking) que atuam nos mercados financeiros e cuja principal função são as operações financeiras de todo o tipo. Infelizmente, aos bancos tudo tem sido permitido e as diferentes funções misturam-se e confundem-se numa mesma instituição. Seria bom que quem tem a responsabilidade de governar olhasse com outros olhos para esta realidade e recolocasse cada um na devida posição. Não tenhamos ilusões, os bancos nunca se auto-regularão, tal como o mercado – a grande falácia do capitalismo – nunca será capaz de se auto-regular. A não ser que auto-regulação signifique acumulação de riqueza de uma pequena parte e empobrecimento da grande maioria. As fronteiras éticas e morais neste tipo de atividades tornam-se bastante movíveis e elásticas ajustando-se sempre à medida dos interesses da maximização do lucro.
Sobre a crise financeira, além de tudo o que já foi dito e escrito, a conclusão mais óbvia é a de que o sistema bancário mundial mostrou, em 2008, todo o seu saber e kown-how mergulhando o planeta numa crise inédita. Terá o sistema aprendido a lição ou mostrado um pingo de arrependimento? Alguma coisa, mínima que seja, terá mudado? Pelo que se percebe nada mudou, nem irá mudar de per si, já que a gula do sistema financeiro não possui outros critérios que não sejam a maximização do lucro. Vivemos no melhor dos mundos e tudo parece ter regressado à normalidade: os bancos, vítimas da sua própria gula, foram intervencionados (apoiados) pelos estados, aos dirigentes nada aconteceu e continuam a ganhar o impensável e, alguns, até recuperaram os seus prémios. Tudo continua na mesma, salvo para as populações que sofrem na pele as irresponsabilidades dos dirigentes bancários e dos governantes que os apoiaram. Não só o crédito está mais difícil e mais caro, como o sistema financeiro continua a lucrar com a dívida dos países, da qual foram e são os principais responsáveis. Esta impunidade leva a que cada vez mais pessoas desconfiem dos bancos e seus dirigentes e procurem outras formas de gestão das suas poupanças. Deixo-vos alguns exemplos na esperança de que possam ser inspiradores e que um dia também no nosso país possamos assistir á revolução do dinheiro solidário. Não abordarei aqui a questão das moedas locais e a sua importância na dinamização das economias locais e dos territórios, uma vez que me parece ser um assunto que merece um post próprio. Ficará para uma próxima, deixando-vos, contudo, o vídeo como forma de introito.
1. COOP57 | www.coop57.coop
A história desta cooperativa começa em 1986 quando a BRUGUERA, uma velha editora de Barcelona fecha as suas portas. De entre os trabalhadores despedidos, 57 decidem juntar uma parte da indeminização recebida e criar um fundo de apoio à criação de emprego para as empresas locais. Uma condição: as empresas deveriam obedecer a determinados critérios sociais. Assim, o Fundo foi criado com 180 000 euros e, em 1995, com o objetivo de continuarem a alimentar o fundo, os fundadores decidem fazer apelo à poupança da população dando origem a uma Cooperativa de Serviços Financeiros: Coop57.
Atualmente, a cooperativa conta com 1200 cooperantes individuais e 350 organizações da Economia Social e Solidária. Desde o início da crise que a cooperativa teve um crescimento acentuado, sobretudo porque as pessoas, devido a perda de confiança nos bancos, tendem a procurar outras formas de aplicarem as suas poupanças, de forma a que sejam úteis a outros e que eles próprios tenham algum controlo na sua aplicação. Importa dizer que a taxa de remuneração das poupanças é decidida em Assembleia geral (2% em 2011), assim como a aplicação do dinheiro, seguindo critérios sociais e éticos muito precisos.
2. CIGALES | Club d’Investisseurs pour une Gestion Alternative et Locale de l’Épargne Solidaire | http://www.cigales.asso.fr/ 
Estes pequenos clubes de investidores, criados em 1983 em França, são uma espécie de min cooperativas constituídas por cidadãos comuns que desejam investir as suas poupanças na economia local e, sobretudo, em empresas com objetivos sociais. Atualmente existem cerca de 140 clubes Cigales disseminados por toda a França.Trata-se de clubes muito próximos da realidade local, compostos em média por 13 pessoas e com uma quota mensal de cada membro que ronda os 25 €. Estão organizados por associações regionais existindo uma Federação Nacional. Entre 1983 e 2005, estes clubes tinham junto cerca de três milhões de euros e apoiaram cerca de mil micro empresas locais. A nível legislativo, é uma atividade devidamente regulamentada e cada clube tem um tempo de vida definido, assim como os pequenos empréstimos concedidos. Os projetos a apoiar localmente são da responsabilidade de cada clube. Em Portugal exisitiu, em 1975, na margem sul, uma tentativa de formar um clube deste tipo, mas experiência gorou-se.
3. GARRIGUE | www.garrigue.net
Trata-se de uma cooperativa de capital de risco solidário, fundada em 1985 para financiar empresas da economia solidária. Serve muitas vezes para complementar o apoio das Cigales. Em 2010 tinha investido três milhões de euros em 160 empresas, permitindo a criação ou consolidação de 3 600 empregos. Pessoas individuais ou coletivas podem participar no financiamento.
Jean-Claude Rodríguez-Ferrara Creador de las Comunidades autofinanciadas (CAF)
As comunidades Auto Financiadas foram criadas em Espanha pelo jovem empreendedor social Jean Claude Rodriguez-Ferrera, influenciado pelos pequenos grupos de «tontines» espalhados em muitas regiões do Globo, nomeadamente África, América Latina e Ásia. Estes pequenos grupos locais privilegiam as relações de vizinhança e de proximidade, uma vez que se trata de pequenos grupos de pessoas que põem em comum as suas poupanças e decidem coletivamente os empréstimos a um dos membros. Estas comunidades têm a grande vantagem de preencher um vazio na sociedade, ou seja pequenos empréstimos de 300 a 400 euros para necessidades imediatas (livros escolares, um electrodoméstico que avariou, uma consulta médica, pequenas obras…).  Trata-se de grupos de entreajuda financeira, cujos membros se autofinanciam através das suas poupanças. Contêm em si uma pedagogia de poupança e de gestão das próprias poupanças, além de aumentarem profundamente a autoestima e confiança das pessoas, já que podem perceber que mesmo pobres podem poupar e serem financeiramente autónomas. Este é um modelo facilmente replicável e em Portugal começam a existir algumas.
São muitas as iniciativas por esse mundo fora que tentam dar uma outra utilidade ao dinheiro e às poupanças dos cidadãos tornando-as úteis a outros e eficazes em termos de economia local. Poderia falar ainda dos bancos socialmente responsáveis, cooperativas bancárias, banca ética, Caixas mutualistas, etc… Sendo verdade que algumas destas instituições, pertencentes à Economia Social, perderam o seu caráter solidário, não é menos verdade que a maioria continua a desenvolver atividades fundamentais para o desenvolvimento dos territórios e dinamização da sua economia.
Não falei, propositadamente, nas moedas locais – que são mais do que imaginam, mesmo na Europa – já que a elas dedicarei um próximo post. Também num próximo post vos darei a conhecer alguns dos produtos financeiros solidários, promovidos por instituições da economia solidária, que permitem que as poupanças sejam utilizadas no apoio a iniciativas dessa mesma economia que vão desde o microcrédito, saúde, habitação, capital de risco inclusivo, garantias para projetos inclusivos, etc.. Deixo-vos alguns links que vos podem ajudar a um outro olhar sobre esta realidade. Deixo-vos ainda dois vídeos sobre a moeda social e uma experiência local.
Links:
MOEDA SOCIAL
MOEDA LOCAL
Serão os bancos, tal como nos dizem, imprescindíveis è economia? Eles só o serão na medida em que apoiarem e dinamizarem a economia e enquanto as pessoas não descobrirem outras formas de se organizarem e gerirem as suas poupanças. Na verdade, tal como hoje conhecemos os bancos, percebemos que num outro tipo de organização social e económica os bancos – tal como os conhecemos hoje – não seriam indispensáveis e daí resultariam ganhos para as comunidades. Infelizmente, também a maioria dos economistas andam longe desta realidade, sobretudo porque formatados não a olhar para a realidade e a procurar novas soluções, mas porque os move a preocupação de encaixar a realidade nas teorias que desenharam ou lhes ensinaram. Como a inovação social e económica ganhariam se de repente os economistas despertassem, se libertassem das amarras dos cânones que os governam, e fossem bem mais humildes na abordagem que fazem da realidade. A maioria dos economistas são avessos à verdadeira inovação e receiam-na, não apenas por serem das corporações mais conservadoras, mas por lidarem muito mal com a novidade e os desvios da normalidade.
Sejam felizes em seara de gente. Tentemos descobrir novas formas de colocar as nossas poupanças ao serviço da economia solidária.
Nota: muita da informação foi retirada do livro de Bénédicte Manier, “Un million de révolutions tranquilles – Comment les citoyens changent le monde”, Éditions LLL - Les Liens Qui Libèrent, 2012.

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