(DES)UNIÃO QUE NOS (DES)GOVERNA

Jean-Claude Trichet, dias antes de abandonar o comando do Banco Central Europeu (BCE), declarava numa breve entrevista ao jornal «Le Monde» (31/10/2011): "Os decisores políticos devem fazer um esforço de antecipação dos acontecimentos, mesmo se o tempo de decisão nas nossas democracias não é necessariamente o mesmo dos mercados". Não será difícil, mesmo para o mais incauto e distraído dos cidadãos, estar de acordo com tal declaração. O problema está precisamente na capacidade de antecipação dos decisores, já que essa é uma qualidade que, embora possa ser mais ou menos inata, depende de determinados factores.

Uma sólida cultura política e democrática, à prova de toda a espécie de intempéries, coragem e capacidade em assumir riscos, disponibilidade para ouvir e intuição na leitura da realidade, são alguns dos factores determinantes. Estes factores aliados a uma forte consciência solidária e a uma visão política coerente capaz de definir estratégias que envolvam os cidadãos, são condições necessárias a essa capacidade de antecipação. Porventura será pedir demasiado aos decisores, já que de humanos se trata, mas o importante é que façam o esforço e não passem o tempo a fingir que decidem ou colocando os seus próprios interesses - nacionais e pessoais - acima do interesse colectivo dos milhões de cidadãos europeus. Os últimos tempos e a agudização de uma crise por inércia ou inépcia dos decisores, que lança os povos numa angústia, desconfiança e desesperança cujas consequências a longo prazo serão muito difíceis de avaliar e de prever. A capacidade de antecipação implica, em primeiro lugar, que exista uma estratégia assumida por todos num compromisso solidário que confira coerência às decisões. Significa pois que as decisões, assumidas solidariamente por todos, sejam resultado do confronto e discussão democrática e não apenas daqueles que pretendem chamar a si o protagonismo ou passeiam a sua vaidade provinciana, tendo como único argumento um poder não legitimado.
A história recente da Europa mostra-nos precisamente o contrário e os decisores transmitem a ideia de uma Europa frágil, arredada das regras básicas de uma democracia,  muito pouco solidária, incapaz de delinear um projecto colectivo e cujos decisores, incapazes de se libertarem das teias em que a economia financeira os enredou e das pressões nacionais, se limitam a colocar pensos rápidos em doenças cujo único caminho é a cirurgia urgente. O exemplo que os actuais líderes europeus dão aos cidadãos da Europa é, no mínimo, confrangedor, quase patético. Imaginem o que seria, neste rectângulo à beira do atlântico desenhado, os líderes da actual coligação tomarem todas as decisões sem darem cavaco aos próprios pares de governação e/ou aos eleitos do povo!? Até poderiam reunir em sua própria casa, aproveitando melhor o tempo e evitando deslocações desnecessárias. Que democracia seria essa?! Bem vistas as coisas, actualmente  na Europa o que se passa não é muito diferente dessa anedótica situação ficcional.
Esta realidade tem como consequência directa uma desconfiança crescente quanto ao futuro da Europa, havendo mesmo opiniões que insinuam o perigo de uma guerra. O que se construiu, com avanços e recuos, e apesar dos erros cometidos ou dos defeitos de construção, é demasiado importante e é o resultado do esforço de muitos e da visão de alguns decisores que sonharam um espaço de liberdade e de solidariedade, para que agora nos deixemos levar na enxurrada de políticos merceeiros cuja única preocupação é o «Deve» e «Haver» das suas casas. Se pretendem transformar-nos em formiguinhas, exijamos que a música seja outra e que também nós participemos na partitura ou que a cigarra, pelo menos olhe para o esforço colectivo dos povos.
É verdade que os tempos são exigentes e que importa reflectir sobre algumas questões que, infelizmente, não fazem parte das partituras (discursos). O único caminho possível, se queremos continuar a construir um espaço de liberdade, de paz, de justiça e de solidariedade, é que essa exigência assente na solidariedade entre todos e que a partir dela se possam delinear horizontes de esperança, mesmo se muito diferentes dos imaginados.
Uma das questões sobre a qual importa reflectir prende-se com o paradoxo criado entre a ideia de uma riqueza ilimitada e os recursos limitados do nosso planeta. Não é possível continuar alegremente a alimentar a ideia de que a riqueza é ilimitada e que o padrão de vida - ultrapassada a crise - tenderá a ser mais elevado. Este paradoxo tenderá a criar desequilíbrios cada vez maiores que acabarão por implodir as sociedades. Uma outra ideia, muito cara ao pensamento económico neo-liberal, é a de que todas as dimensões da vida se devem encaixar - submeter diriam eles - na dimensão económica dominante. A ideia, por exemplo, de que a crise actual é apenas económica e financeira, além de ilusória é também aberrante. Segundo Dany-Robert Dufour, filósofo que publicou uma antropologia crítica do liberalismo, são os próprios fundamentos em que assenta a nossa civilização que estão em causa. Não é tolerável que a sociedade de homens e mulheres, na sua riqueza e na sua diversidade, seja apenas um apêndice ou auxiliar do mercado. A economia liberal dominante esquece - ou ignora - que cada uma das outras dimensões humanas possui as suas leis próprias e que não se podem reduzir às leis da economia de mercado. Ainda segundo Dany-Robert, uma outra ideia sobre a qual importa reflectir e sobretudo combater é o mito que se criou de que a economia dominante é infalível e que só através dela é possível encontrar as soluções. Necessitamos de soluções inovadoras que impliquem rupturas com o actual status-quo, o que será quase impossível que a economia neo-liberal nos traga.
Este é um tempo em que teremos que aprender a viver com a incerteza e a melhor conviver com a complexidade, mas importa que tenhamos consciência que a procura de soluções implicará necessariamente, mais cedo ou mais tarde, mudança de paradigmas. Na  entrevista já citada, e a propósito do movimento dos Indignados, Jean-Claude Trichet chamava a atenção para a necessidade urgente de o mundo financeiro alterar as suas regras e valores, pois as sociedades não vão tolerar os desmandos que colocam em risco a sobrevivência das sociedades enquanto comunidades relacionais de homens e de mulheres.
São desafios demasiado grandes para visão tão tacanha dos actuais decisores.
Este é um tempo de exigência, exijamos maior solidariedade entre todos, justiça, participação e liberdade.
Tentem ser felizes já hoje para não correrem de um amanhã sem esperança.

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