TRANSPORTES DA DEPRESSÃO


Tempos de vacas magras não serão certamente propícios ao dispêndio de tempo a imaginar o futuro, uma vez que o presente é de tal forma avassalador que não deixa o mínimo de espaço aos devaneios de um qualquer sonhador ou construtor de utopias. Contudo, algo que só o futuro nos ensinará é que o presente marca definitivamente o tempo que há-de vir. Se de tal evidência o humano tivesse consciência, não deixaria, mesmo em tempos de míngua, de cuidar zelosamente do seu futuro. Ou do futuro daqueles que lhe hão-de suceder, já que essa é também uma sua responsabilidade. Infelizmente são raros os visionários com tamanha ousadia.

Passemos pois à realidade bem menos poética, o mesmo será dizer a trivialidade do presente. Uma das vertentes dessa realidade que mais marca o nosso quotidiano é talvez os transportes, pois é através deles que todos os dias nos fazemos à vida. Os transportes, ou melhor dizendo, a política de transportes, são um dos bons exemplos da confirmação - ou não - da visão estratégica dos governantes de um país. Estratégia essa que não casa nada bem com a contabilidade de merceeiro de «Deve» e «Haver» ou com cortes que têm como único efeito diminuir o nosso stock (o já adquirido). No futuro, quando finalmente acordarmos do pesadelo, não teremos o que vender e ainda muito menos como comprar. É uma evidência que as empresas de transportes públicos - à semelhança de outras empresas - atravessam uma crise tremenda. É verdade que muitos erros terão sido cometidos. Não será menos verdade que muito dinheiro foi esbanjado. Também não será menos verdade que  alguns desses gastos não terão sido feitos em nome do cidadão utilizador, mas apenas com o objectivo de alimentar uma classe de interesses (e de interesseiros) que ao longo dos anos sugaram essas e outras empresas. Resumindo, tornaram-se especialistas em sugar o Estado, o mesmo será dizer todos nós. Embora aceitando as dificuldades dos tempos actuais, haja alguém que me explique, a mim cidadão inadvertido, por que diabo a primeira das soluções é cortar sem sequer ousarem o mínimo esforço de colocarem em cima da mesa outras eventuais soluções. Porque não aumentar, por exemplo, o número de passageiros e melhorar o serviço? Não sei se essa seria a solução para os problemas com os quais essas empresas se debatem, mas parece-me que essa forma de abordagem faria toda a diferença, pois é precisamente aí que se situa a estratégia ou a ausência da mesma. Cortar é a solução para quem não tem estratégia e para quem não acredita no futuro. A política de transportes tem que ser enquadrada globalmente e não confiná-la às fronteiras do sector. Uma empresa de transportes públicos até pode ser deficitária - desde que o défice seja controlado e mantido dentro de certos limites - sem que isso signifique que seja prejudicial ao país. Pelo contrário, até poderá ser bem mais benéfica para o país e, nesse caso, apesar do défice, ninguém dirá que ela contribui para o empobrecimento do país. Se, por exemplo, o défice for inferior à contribuição que daí resulta para a diminuição da factura energética do país ou para a melhoria do ambiente ou ainda para uma maior mobilidade urbana, não vejo mal de maior na existência do défice. Isso implicaria uma outra forma de fazer as contas, obrigaria a planear o futuro.

Uma política de transportes que promova a utilização do transporte público em detrimento do transporte individual, que diminua a entrada de viaturas no perímetro urbano, que diminua o tempo de deslocação dos utentes, que crie maior mobilidade, que seja capaz de promover a deslocação dos centros dos perímetros urbanos, que promova um melhor ambiente, não me parece que seja prejudicial ao país, apesar de eventual défice. Exigir que os utentes paguem mais por um serviço cuja qualidade e condições em que é prestado é inferior, não parece ser o melhor caminho, mesmo se no presente aparenta o contrário. Parece haver muita gente distraída, pois seja qual for a estratégia - desde que exista - tudo o que conseguimos antever do futuro aconselha a defesa e a promoção do transporte público e não o contrário.
Como ilustração da ausência de estratégia, atente-se na discussão à volta do novo aeroporto ou sobre o comboio de alta velocidade. Essa discussão, salvo muito raras excepções, quase nunca se centrou no que seria realmente importante, ou seja, o seu enquadramento numa estratégia de desenvolvimento para o país. Na maioria das vezes ela centrava-se na discussão das várias opiniões e interesses políticos e económicos das diferentes partes interessadas. O problema não está se essas infra-estruturas devem ou não ser construídas, mas o que podem significar para o país, qual a sua mais valia para o desenvolvimento futuro do país, ou seja, como se enquadram e servem a estratégia de desenvolvimento desenhada e se nesse contexto é ou não importante Portugal ser um plataforma de entrada de mercadorias na Europa ou uma placa giratória de passageiros intercontinentais. Só a partir dessa reflexão seria possível avaliar a  necessidade ou não desses projectos e não se cair no ridículo dos custos para as gerações futuras (sobre esse assunto escreverei um destes dias), por um lado, ou da necessidade da sua construção apenas como símbolo de modernização do país. Muito pouco para tão avultados investimentos!
Voltemos aos transportes. Não se percebe, por exemplo, que nos terminais de transportes que servem diariamente os meios urbanos não existam parques de estacionamento funcionais, devidamente articulados com os transportes públicos, e a custos que promovam a utilização do transporte público e não que o desincentivem. Não se percebe, por exemplo, que linhas de metro mudem de zona (custo mais elevado para o utilizador) apenas por uma estação, já que a linha não tem continuidade. Não se entende que no acesso aos centros urbanos não existam mais corredores de transportes públicos, assim como nas cidades, criando maior mobilidade.
Pretender agora acabar com algumas carreiras de transportes  ou fechar o metro ainda mais cedo, é já falta de sensatez e prova de grande miopia. Pessoalmente acharia mais ajustado, por exemplo, utilizar o dinheiro das multas de estacionamento nos centros urbanos para promover a utilização dos transportes públicos ou, ainda encontrar formas de diminuir a entrada de veículos individuais nos centros urbanos. A definição de uma política de transportes públicos, nomeadamente nas cinturas dos centros urbanos, terá necessariamente que envolver os municípios na procura de soluções, pois só assim será possível uma verdadeira articulação entre todos e, sobretudo, corresponder não aos interesses, mas às necessidades daqueles que diariamente têm necessidade de se deslocar nos centros urbanos.
Uma política de transportes públicos não é um mero exercício contabilístico, é encontrar soluções para tornar o mundo mais sustentável - não apenas financeiramente - e criar condições para que as pessoas tenham mais oportunidades para serem felizes.
Tentem ser felizes nesta seara de gente.


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