OS NÚMEROS DO NOSSO FUTURO

Estamos no momento de discussão do Orçamento de Estado para 2015 na Assembleia da República. Assistimos esta semana à discussão na generalidade e baixará depois à respectiva Comissão onde serão introduzidas as alterações necessárias ou aquelas que a maioria deixar. A discussão no plenário é sobretudo política - e diga-se que deixa muito a desejar - enquanto na comissão, onde é feito o verdadeiro trabalho na especialidade, com a presença do ministro do respectivo sector, será simultaneamente política e técnica. Lá para o fim de Novembro voltará ao Plenário para ser votado na especialidade. O Orçamento de Estado, embora distante e enigmático para a grande maioria dos cidadãos e cidadãs, é um instrumento que condiciona muito as nossas vidas e, força das circunstâncias, sobretudo a vida dos mais fragilizados e necessitados. Por isso mesmo, o orçamento não é um documento contabilístico previsional, mas um documento em que se espelham em números as opções políticas sobre a forma como se pretende governar o país, quais as prioridades e como vão ser geridas, quais as expectativas e quais os cenários possíveis. Neste aspecto, e ao contrário do que a direita gosta de afirmar, porque lhe dá jeito, existem diferenças fundamentais entre esquerda e direita, mesmo perante a escassez de recursos. A primeira grande diferença assenta nas prioridades, ou seja, enquanto para a direita a principal prioridade é de forma (controlo do défice), independentemente das consequências, para a esquerda deverá ser as pessoas, independentemente dos danos colaterais que isso possa causar a alguns poderes instalados. É evidente que a direita dirá sempre que também para ela as pessoas estão no centro das decisões, mas tendo como princípio ideológico a primazia do mercado, na prática isso nunca acontecerá. Por outro lado, quando os direitos privados têm primazia sobre os direitos colectivos, e aqueles não estão sujeitos ao controlo democrático das sociedades, é difícil que as pessoas estejam no centro das decisões. Basta lembrar a recente crise do sistema financeiro para que se perceba. Aliás, importa sublinhar o facto de que, num estado de direito democrático,  enquanto o Estado está sujeito ao controlo da legalidade democrática, o mesmo não acontece com as empresas, apesar de serem um centro de poder num estado democrático. Não existe controlo democrático sobre os seus objectivos, embora os custos das suas externalidades negativas (em que a passagem por paraísos fiscais, a deslocalização para zonas fiscalmente amigas ou os danos causados ao património ou recursos naturais sejam apenas alguns dos muitos exemplos) recaiam sobre os cidadãos. Por isso, não é apenas hipócrita a postura de alguns empresários como profundamente imoral quando tentam justificar o injustificável. Tal como é quase anedótica a tão propalada Responsabilidade Social das Empresas, quando o fundamental é saber em que medida existe um alinhamento entre os interesses privados (da empresa) e os interesses colectivos (o bem comum). Uma outra diferença fundamental entre esquerda e direita é a redistribuição da riqueza, sabendo que a redistribuição pela via fiscal, através dos impostos, é sobretudo correctiva, situando-se a verdadeira redistribuição a montante. Aliás não deixa de ser curiosa a frase, muito querida à direita, apesar de tão demasiado óbvia ao ponto de tornar patético que a profira: «Antes de redistribuir riqueza é necessário criá-la». Ora a redistribuição da riqueza, cujo objectivo é diminuir as desigualdades, começa precisamente na sua criação. A ideia de criação de riqueza da direita não tem em conta as condições, ou seja, valoriza o capital em detrimento do trabalho (desvaloriza as pessoas), recorrendo depois à correcção fiscal para atenuar as desigualdades. O grande problema é que o saldo entre a riqueza criada e as medidas correctivas será sempre desfavorável à força trabalho, contribuindo assim para o crescimento das desigualdades e aumento dos níveis de pobreza. Quando um governo desinveste claramente, porque não é prioridade, na educação e no ensino público, está à partida a criar condições para que no futuro a distribuição da riqueza seja ainda mais desigual. Quando se desinveste nos serviços de saúde e se diminuem os apoios às populações mais carenciadas, está-se a criar condições para que as desigualdades sejam ainda mais gritantes.

Este orçamento, pelo que foi sendo dito sobre o assunto, apresenta incoerências várias que revelam, infelizmente, a falta de estratégia e que o resumem a um mero documento contabilístico. Na verdade, esvaziado do que seria o seu verdadeiro conteúdo, mais difícil se torna a sua discussão. De pouco adiantará discutir números quando não se sabe exactamente ao que correspondem ou se correspondem a cenários imaginários. Sublinho apenas alguns aspectos:
1. É quase unânime - à excepção da maioria - que os cenários subjacentes ao orçamento (crescimento, receita fiscal, controlo da despesa...) são muito pouco prováveis, o que coloca, logo à partida, um risco demasiado elevado;

2. Confundir reformas com ajustamentos contabilísticos;

3. Confundir política de natalidade com um ou outro rebuçado fiscal que nada resolve;

4. Confundir reforma fiscal verde com mudanças comportamentais e de mentalidade;

5. Resumir a estratégia do desenvolvimento económico ao controlo do défice.

Mais do que confusão, trata-se de ausência de pensamento e estratégia sobre os diversos assuntos.

É verdade, e disso importa ter consciência, de que quando os recursos são escassos as soluções serão mais difíceis de encontrar, mas é precisamente nesses momentos que a solidariedade e a consciência social se tornam mais exigentes. E essa exigência é para todos, recaindo sobre cada um consoante a parte da riqueza que lhe cabe (e essa é também uma diferença entre esquerda e direita). Sabemos também que o caminho não depende apenas de nós ou, no mínimo, está demasiado dependente de decisões de terceiros, nomeadamente da União Europeia, mas o pior que pode acontecer - e, infelizmente, tem acontecido - é interiorizarmos o destino como inevitável caindo numa preguiça mental, em vez de procurarmos soluções colectivas que vão para além da inevitabilidade. 

À oposição, e nomeadamente ao PS, cabe fazer as contas das suas propostas e assumir, se caso for, algumas rupturas. Isso não significa que não se tenha também como horizonte o controlo das Contas Públicas (é fundamental), mas uma coisa é atingir esse objectivo destruindo tudo à volta (negando o futuro) e outra, mesmo se mais moroso, é atingir o objectivo criando valor e desenhando um futuro que todos entendam. Exige trabalho, dedicação, abdicar de algo que julgávamos adquirido... mas tudo isso igualmente distribuído e não sobrecarregando alguns (a maioria e sempre os mesmos) em nome de interesses económicos duvidosos e, muitas vezes, imorais.

Embora o Orçamento seja um documento anual, ele pode ser a afirmação de uma esperança e de um caminho para vários anos, desde que seja coerente, claro e aponte verdadeiramente para um horizonte que não seja a redução da vida das pessoas a um mero exercício contabilístico de «Deve» e «Haver».

Uma última nota para as referências recorrentes a José Sócrates cujo fantasma parece continua a assombrar as mentes da maioria. Já não é uma questão política, é um problema de demência e, por conseguinte, assunto para os psicanalistas.

Sejam felizes em seara de gente.

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