UM MUNDO DE COBARDES ONDE NÃO HÁ LUGAR PARA A DIGNIDADE

1. A PROPÓSITO DA DÍVIDA OU DA SUA RENEGOCIAÇÃO

Confesso que não entendo o medo de alguns - gente até insuspeita - quando se fala sobre a renegociação da dívida. Ainda menos compreendo quando é opinião unânime que a dívida é insustentável e não se coaduna com o desenvolvimento que se pretende para o país e que essa mesma gente pretende que acreditemos como possível. É que a continuar assim o desfecho é o empobrecimento contínuo, ou seja, uma espécie de morte lenta até nada mais existir a não ser um pequeno rectângulo, eventualmente uma estância balnear e veraneante dos abastados da Europa. O desfecho - o empobrecimento - parece ser também opinião unânime, sendo a única diferença que uns o dizem abertamente e outros o calam de forma cobarde. Porque, verdade se diga, esta é a atitude própria dos cobardes que se escondem, sem levantar grandes suspeitas, na esperança de que o inimigo parta em retirada e os deixe sossegados. O problema é quando são descobertos: rastejam, bajulam, imploram... tornam-se escravos, porque o inimigo, até por uma questão de dignificação da sua própria vitória, nunca perdoa os cobardes. Pior ainda, eles nem ser escravos merecem, porque àqueles resta-lhes a dignidade, enquanto aos cobardes apenas lhes resta o desprezo.
É verdade que este processo não se faz sem a Europa, mas para que haja a mínima probabilidade para que tal aconteça, é necessária a coragem, a lucidez, a clareza, a firmeza, a obstinação dos audazes e não o silêncio dos cobardes. O argumento de que não deveremos ser nós a tomar a iniciativa, mas os credores, é a auto-condenação ao empobrecimento, ao suicídio colectivo. Os abutres saciam-se até não restar o mais ínfimo pedaço de carne e quando nada mais resta, abandonam as ossadas. É preferível, por uma questão de dignidade, empobrecer lutando que morrer cobardemente na esperança que algum dia o inimigo nos estenda a mão.



2. A POBREZA QUE NOS ENVERGONHA


Saiu há algum tempo uma notícia cujo título era «Criminalização de sem-abrigo avança pela Europa». A notícia referia-se em concreto à Noruega e Hungria, mas apontava como sendo uma tendência em vários países, em regiões ou municípios em alguns países, nomeadamente em territórios onde os partidos de direita ganharam protagonismo. Criminalizar significa atribuir culpas e responsabilidades aos próprios e escondê-los dos olhos da sociedade. Já não basta as pessoas serem excluídas, têm agora que suportar o fardo da culpa por uma situação da qual não são responsáveis e que outros - aqueles que os condenam - geraram. De um ponto de vista muito pragmático, isto significa que será muito mais difícil para as organizações que tentam ajudar e apoiar esta população poderem fazê-lo e que a pobreza passa a ser olhada não como uma consequência do tipo de sociedade, mas como uma opção de vida feita por alguns. É também uma forma de varrer para baixo do tapete os insucessos da própria sociedade sem se preocupar com os mecanismos iníquos que geram essas situações, o que significa que não existe vontade ou interesse em resolvê-las. Hoje serão os pobres, amanhã os apátridas, depois os que gostam disto ou daquilo, os que professam tal ou tal crença... enfim, a História ensina-nos o desfecho. Não o esqueçamos e avivemos a memória.

Por outro lado, na Bolívia acaba de sair um decreto que baixa a idade legal do trabalho dos 14 (idade mínima estabelecida pelas Nações Unidas) para os 10 anos. O objectivo da lei, segundo o governo, é o de aumentar o rendimento dos mais pobres e melhorar a sua situação financeira. Estranha forma esta de redistribuir a riqueza!!! Medidas como esta, além de promoverem legalmente a exploração infantil, irá agravar ainda mais o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, por um lado devido à utilização de mão-de-obra de baixo custo tendo como resultado maiores margens de lucro e, por outro, impossibilitar as crianças de irem à escola terá como resultado, no futuro, não apenas maior pobreza, mas sobretudo menor capacidade para romper o ciclo de pobreza.

Num tempo em que se fala à boca cheia de globalização, talvez os países devessem preocupar-se um pouco mais sobre algumas questões de direito, nomeadamente direitos do Homem e direitos das Crianças. Estes são exemplos em regiões do globo diferentes e em sociedades também economicamente diferentes, mas onde a pobreza (os pobres) parece envergonhar o poder. Mais do que a pobreza, o que nos devia envergonhar e indignar seriam as causas que conduzem a tais situações, pois só assim as podemos combater e erradicar a pobreza.


3. UM GOVERNO IMORAL

Pior do que um governo incompetente é um governo que não respeita a dignidade dos seus cidadãos e cidadãs e utiliza práticas próprias de quem não possui princípios e de quem utiliza práticas nada prestigiantes. Apenas dois exemplos recentes.
a) Avaliação dos Professores
Não se compreende como o Ministro da Educação, utilizando o argumento de que cumpriu a lei, marca a avaliação dos professores com cinco dias de antecedência (3 dias úteis, já que incluía o fim-de-semana) não deixando aos professores e seus representantes, no respeito pela lei, a oportunidade de se manifestarem através da greve. Mesmo não concordando muitas vezes com as posições dos representantes sindicais da classe, esta não será certamente a forma de tratar as pessoas e resolver situações de maior conflito. Forma ardilosa de «proibir» o direito à greve. Sabemos que, em determinadas situações, o argumento de que está de acordo com a lei apenas pretende esconder a imoralidade dos factos. na presente situação é esse o caso.
b) Diminuição do tempo de estágio
Sabemos que os recursos são escassos e que devem ser bem geridos (não apenas nas despesas, mas também nas receitas), mas esconder objectivos de determinadas medidas e tentar tornear os problemas enganando as pessoas, é algo muito feio. Reduzir o tempo de estágio para que os beneficiários não possam recorrer ao subsídio de desemprego, é maquiavélico. 
Não é aceitável - não pode ser - que um governo trate os governados como entes sem qualquer dignidade e os utilize em proveito de objectivos pouco transparentes com base em princípios duvidosos. BASTA!

4. SERÁ QUE PODEMOS REINVENTAR A DEMOCRACIA?

Segundo notícia do jornal Público online "O Parlamento britânico, pela mão do Presidente da Casa dos Comuns, John Bercow, criou recentemente uma comissão para estudar as oportunidades que as tecnologias digitais podem aportar ao funcionamento do sistema democrático no reino Unido. (...) Um dos aspectos inovadores desta iniciativa é que as contribuições podem chegar á comissão em diversos formatos digitais como e-mails, sms, vídeos, blogue posts e de canais digitais, como o Facebook, o Twiter, o Linkedin e o Youtube, ou ainda, através de um web fórum criado especificamente para o efeito." Ver notícia >>. Esta notícia coloca na ordem do dia o debate sobre de que forma os partidos se podem aproximar e abrir à Sociedade Civil e quais as instâncias de poder que daí podem resultar no seio dos partidos. É apenas o início, mas creio que as experiências terão tendência a multiplicar-se e obrigarão os partidos a uma grande transformação.
As primárias no PS, tal como aconteceu em França, mais do que o combate entre dois militantes e duas perspectivas, é o início de um novo caminho - embora ainda muito experimental - que tem como objectivo uma maior aproximação entre o partido e a sociedade civil. Dir-se-ia que é a verdadeira abertura do partido à Sociedade Civil assumindo os riscos que isso comporta. É verdade que o caminho pode ser muito perigoso, já que de repente os cidadãos se vêem com um poder que sentem poder alterar o rumo, o que pode abrir caminho a vários tipos de populismo. No caso do PS, e independentemente do julgamento que cada um fará da atitude de António Costa, a verdade é que ele decidiu avançar pressionado por um grupo significativo de militantes. Já aqui o escrevi que mais do que os resultados eleitorais, o que mais contribuiu para que tudo se precipitasse foi a gestão desastrosa de uma noite eleitoral da parte de António José Seguro. Ora isso significa que o caminho tornou-se mais estreito e o espaço para o erro, o qual depende da percepção que os outros têm da projecção futura desse erro, diminui de forma significativa e está sujeito ao julgamento permanente dos militantes. A grande questão é que esse julgamento, com as primárias, sai fora da órbita dos militantes.

Seremos nós, enquanto cidadãos, capazes de reinventar a democracia? Serão os partidos, já que são eles as instâncias de mediação, capazes de se adaptar e criar instâncias de poder verdadeiramente democráticas e onde a Sociedade Civil tenha realmente lugar e voz? Esta não é a fórmula da integração dos falsos independentes, mas o desafio de um confronto, não exactamente com a realidade, mas com a percepção que a Sociedade Civil tem dessa mesma realidade.
Sejam felizes em Seara de Gente.

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