SER SOLIDÁRIO... ACREDITAR NO OUTRO
Dando volta aos arquivos (loucura da qual sou acometido por vezes), dei comigo a reler escritos de alguns anos. Por entre esses escritos, encontrei uma crónica que havia publicado, em Junho de 2000, na revista «Viragem», editada pelo Metanoia, Movimento de Profissionais Católicos. Por me parecer manter toda a sua actualidade ou, eventualmente, ser hoje ainda maior, decidi agora partilhá-la neste espaço. Resisti à tentação de qualquer alteração ao texto, correndo o risco de hoje não pensar ou dizer exactamente o mesmo. Mas no essencial continuo a rever-me nessas palavras.
Já aqui escrevi que a
solidariedade é apenas uma outra face do mesmo rosto, o amor. Esta afirmação
poderá parecer, pelo menos a alguns, completamente disparatada ou mesmo
absurda. Segundo determinada perspectiva, talvez parte da razão esteja do seu
lado, porque têm da solidariedade uma concepção político-ideológica, o que
significa que valorizam muito mais a acção que a relação que existe ou que
desejamos construir. Mas é evidente que as sociedades foram evoluindo e que
hoje se constata que é muito mais fácil as pessoas se mobilizarem em torno de
interesses comuns a pequenos grupos do que em torno de grandes ideais
político-ideológicos colectivos. Não se pretende fazer qualquer juízo de valor
sobre as vantagens ou desvantagens de tal evolução, mas apenas constatar o
facto. A inexistência de grandes referências colectivas, ou que ofereçam um
consenso bastante alargado, e a pulverização de referências restritas a
pequenos grupos teve como consequência uma certa perda de consciência
planetária. Os temas ecológicos são talvez os que hoje conseguem reunir maior
consenso e despertar uma certa consciência planetária. No entanto, trata-se de
coisas bastante concretas e não de um ideal colectivo que lhe confira uma certa
unidade. Dito de outro modo, trata-se essencialmente de remediar alguns males –
luta pela sobrevivência – e não de uma consciência colectiva que tenha como
horizonte uma sociedade completamente nova, apesar de aqui e acolá aparecerem pequenos
focos que tentam reacender essa consciência.
Ser solidário implica sempre não
apenas uma acção ou acto mas também o desejo de uma relação, embora esta nem
sempre seja perceptível e muito menos palpável. Isto significa que somos
solidários independentemente daquilo que nos une e porque acreditamos que, de
uma certa forma, vamos ser correspondidos pelo outro. E esta é, na minha
opinião, a grande diferença entre uma solidariedade numa perspectiva
político-ideológica e uma outra fundamentada no amor, ou seja, no desejo de
construir, não para o outro mas com ele, algo de novo. Por outro lado, isto
também significa que a solidariedade nunca se ergue contra alguém (como às
vezes acontece) – nem é talvez a favor de alguém – mas é sempre uma caminhada
feita com alguém. Não importa quem tenha a iniciativa, o importante é o desejo
de construirmos algo com o outro, porque acreditamos nele e esperamos ser
correspondidos.
Há quem afirme que as pessoas são
hoje menos solidárias; talvez, embora eu não esteja totalmente convencido. O
que me parece é que a desinflacção da solidariedade em torno do
político-ideológico originou uma deslocação no sentido de uma atitude mais
anónima, portanto menos visível, mas tanto ou mais eficaz do que as grandes
manifestações públicas de massas, quando olhada a longo prazo. Não quero com
isto menosprezar as grandes manifestações de massas, mas apenas mostrar que
podem existir outras formas às quais nem sempre se presta a devida atenção.
Por outro lado, ser solidário
significa, em primeiro lugar, ter consciência social, ou seja, consciência de
pertença a uma determinada comunidade em que todos os seus membros são
interdependentes. Numa democracia, o cidadão define-se – tal como defende E.
Morin – pela sua solidariedade e pela sua responsabilidade em relação à
comunidade. E ter consciência social implica também uma certa dose de confiança
no outro e acreditar que se pode colectivamente construir algo de novo.
Para terminar gostaria de chamar
a atenção para o que, na minha perspectiva, se pode apelidar de paradigma da
solidariedade, os impostos. Muitos dirão que se trata apenas de uma obrigação
social e que nada tem a ver com solidariedade. Embora tocando o limite do
absurdo, eu diria que só são uma obrigação devido à inexistência de consciência
social. Poder-se-á argumentar sobre o quanto são injustos e sobre a falta de
equidade na distribuição da riqueza, mas essa é uma outra questão que nunca
pode fundamentar a nossa «fuga» ao pagamento de impostos. Qualquer um se pode
recusar a pagar se para tal tiver razões verdadeiramente assumidas sem que isso
em nada diminua a sua consciência social. O que eu quero sublinhar é o facto
daqueles que, como princípio, estão contra o pagamento de impostos ou que
pensam ser uma grande injustiça a sua existência. O grande problema,
nomeadamente no nosso país por razões históricas, é que a sociedade se foi
construindo e solidificando em torno dos direitos relegando para segundo plano os deveres. E uma sociedade em
que as pessoas não tenham consciência dos seus deveres nunca poderá ser uma
sociedade de direitos.
Ser solidário é essencialmente
uma atitude perante a vida e perante os outros e é algo que se vive todos os
dias e a todo o momento.
Aprendamos a solidariedade em
cada dia que nos é dado viver.
Loures, 19 de Junho 2000
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