SER SOLIDÁRIO... ACREDITAR NO OUTRO
Já aqui escrevi que a
solidariedade é apenas uma outra face do mesmo rosto, o amor. Esta afirmação
poderá parecer, pelo menos a alguns, completamente disparatada ou mesmo
absurda. Segundo determinada perspectiva, talvez parte da razão esteja do seu
lado, porque têm da solidariedade uma concepção político-ideológica, o que
significa que valorizam muito mais a acção que a relação que existe ou que
desejamos construir. Mas é evidente que as sociedades foram evoluindo e que
hoje se constata que é muito mais fácil as pessoas se mobilizarem em torno de
interesses comuns a pequenos grupos do que em torno de grandes ideais
político-ideológicos colectivos. Não se pretende fazer qualquer juízo de valor
sobre as vantagens ou desvantagens de tal evolução, mas apenas constatar o
facto. A inexistência de grandes referências colectivas, ou que ofereçam um
consenso bastante alargado, e a pulverização de referências restritas a
pequenos grupos teve como consequência uma certa perda de consciência
planetária. Os temas ecológicos são talvez os que hoje conseguem reunir maior
consenso e despertar uma certa consciência planetária. No entanto, trata-se de
coisas bastante concretas e não de um ideal colectivo que lhe confira uma certa
unidade. Dito de outro modo, trata-se essencialmente de remediar alguns males –
luta pela sobrevivência – e não de uma consciência colectiva que tenha como
horizonte uma sociedade completamente nova, apesar de aqui e acolá aparecerem pequenos
focos que tentam reacender essa consciência.
Ser solidário implica sempre não
apenas uma acção ou acto mas também o desejo de uma relação, embora esta nem
sempre seja perceptível e muito menos palpável. Isto significa que somos
solidários independentemente daquilo que nos une e porque acreditamos que, de
uma certa forma, vamos ser correspondidos pelo outro. E esta é, na minha
opinião, a grande diferença entre uma solidariedade numa perspectiva
político-ideológica e uma outra fundamentada no amor, ou seja, no desejo de
construir, não para o outro mas com ele, algo de novo. Por outro lado, isto
também significa que a solidariedade nunca se ergue contra alguém (como às
vezes acontece) – nem é talvez a favor de alguém – mas é sempre uma caminhada
feita com alguém. Não importa quem tenha a iniciativa, o importante é o desejo
de construirmos algo com o outro, porque acreditamos nele e esperamos ser
correspondidos.
Há quem afirme que as pessoas são
hoje menos solidárias; talvez, embora eu não esteja totalmente convencido. O
que me parece é que a desinflacção da solidariedade em torno do
político-ideológico originou uma deslocação no sentido de uma atitude mais
anónima, portanto menos visível, mas tanto ou mais eficaz do que as grandes
manifestações públicas de massas, quando olhada a longo prazo. Não quero com
isto menosprezar as grandes manifestações de massas, mas apenas mostrar que
podem existir outras formas às quais nem sempre se presta a devida atenção.
Por outro lado, ser solidário
significa, em primeiro lugar, ter consciência social, ou seja, consciência de
pertença a uma determinada comunidade em que todos os seus membros são
interdependentes. Numa democracia, o cidadão define-se – tal como defende E.
Morin – pela sua solidariedade e pela sua responsabilidade em relação à
comunidade. E ter consciência social implica também uma certa dose de confiança
no outro e acreditar que se pode colectivamente construir algo de novo.
Para terminar gostaria de chamar
a atenção para o que, na minha perspectiva, se pode apelidar de paradigma da
solidariedade, os impostos. Muitos dirão que se trata apenas de uma obrigação
social e que nada tem a ver com solidariedade. Embora tocando o limite do
absurdo, eu diria que só são uma obrigação devido à inexistência de consciência
social. Poder-se-á argumentar sobre o quanto são injustos e sobre a falta de
equidade na distribuição da riqueza, mas essa é uma outra questão que nunca
pode fundamentar a nossa «fuga» ao pagamento de impostos. Qualquer um se pode
recusar a pagar se para tal tiver razões verdadeiramente assumidas sem que isso
em nada diminua a sua consciência social. O que eu quero sublinhar é o facto
daqueles que, como princípio, estão contra o pagamento de impostos ou que
pensam ser uma grande injustiça a sua existência. O grande problema,
nomeadamente no nosso país por razões históricas, é que a sociedade se foi
construindo e solidificando em torno dos direitos relegando para segundo plano os deveres. E uma sociedade em
que as pessoas não tenham consciência dos seus deveres nunca poderá ser uma
sociedade de direitos.
Ser solidário é essencialmente
uma atitude perante a vida e perante os outros e é algo que se vive todos os
dias e a todo o momento.
Aprendamos a solidariedade em
cada dia que nos é dado viver.
Loures, 19 de Junho 2000
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