O GRITO E A VOZ DESTE PAÍS

1. Alguém disse ou sublinhou - penso que um cidadão anglo-saxónico - o facto de os portugueses quando se cumprimentam raramente responderem assertivamente. A resposta mais comum à pergunta «Então, como tem passado?» é «Assim, assim...» ou « Mais ou menos...». Por melhor que se esteja, existe sempre uma pequena desgraça, por diminuta que seja, que nos veda a janela do otimismo. Parece quase uma necessidade patológica de que olhem por nós, cuidem de nós ou apenas a necessidade de atenção. Basta assistir às conversas de uma sala de espera de uma qualquer urgência hospitalar para termos a certeza de que qualquer doente, por mais grave que seja a sua doença, encontrará sempre um outro cuja doença é bem mais grave, ao ponto de nem os «Srs doutores» saberem o que quer que seja de tão grave maleita. É este o nosso fado.

Esta nossa patologia é de tal forma que, em momentos de crise como o que se vive, parece atingir dimensão nunca antes vista. As declarações idas de Soares dos Santos, assumindo-se como trabalhador e não como rico (todos os não ricos como eu são uma cambada de preguiçosos!) são sintoma evidente da doença. Imagine-se que agora até o Presidente sem vem queixar, ao povo que o elegeu, das suas desgraças, pretendendo - à boa maneira lusa - que as suas sejam maiores que todas as outras. Tal como nas doenças, a nossa é sempre mais grave que todas as outras. O Presidente, afinal, é bem o exemplo deste nosso fado. O problema é que a ele, enquanto eleito e representante de todos nós, cabe-lhe outra responsabilidade e   é-lhe exigido que aponte horizontes de futuro e de esperança e não o carpir das suas próprias mágoas e desgraças. Cabe-lhe ouvir o grito do povo e transformá-lo em voz que seja ouvida e entendida. Chegados a este ponto, a quem se queixará o povo?!

2. Na nossa sociedade existe um pudor desmedido em fazer qualquer crítica que seja à classe empresarial, aos empresários. Tenho a impressão que existe no subconsciente colectivo o assumir de uma qualquer culpa (talvez resquícios do pós 25 de Abril) que nos obriga constantemente a pedir desculpa e a ser subserviente.  Banqueteando-se muitos deles à mesa do Estado (do contribuinte), vivendo à custa dos seus trabalhadores e não da sua capacidade de gestão, de inovação e de procura de novas oportunidades, parece-me pouco salutar a desculpabilização com que habitualmente são mimados. Comportam-se como se este país não fosse também o seu ou como se não tivessem qualquer responsabilidade na situação que todos vivemos. Há que dizê-lo, a maioria são maus empresários - se é que merecem o epíteto - e por isso cada acordo que se faça é sempre um risco enorme para a classe mais fragilizada, os trabalhadores. Aliás, é caricato que logo após a assinatura do acordo de concertação social venham exigir ainda mais, a descida da TSU. Servem-se do país e dos seus trabalhadores para consolidarem os seus interesses e raramente os vi assumir um gesto de verdadeira solidariedade para com o país e assumirem plenamente a sua responsabilidade social (não a que serve de suporte publicitário ou a que fica bem nos relatórios), mas a que implica um verdadeiro envolvimento na comunidade e nos territórios, porque é essa a função da empresa. Felizmente existem algumas excepções, mas a esses, mais acordo ou menos acordo, tanto lhes dá, porque sabem que podem contar com as pessoas tal como estas sabem que podem contar com eles. É tempo de colocar cada macaco no seu galho. Se pretendem apoios, exijamos mudanças de comportamentos e de procedimentos, porque de Reis fartos está o povo cansado.

3. Além de todos os males financeiros, orçamentais e de competitividade, a sociedade portuguesa sofre - e desde há muito - de um outro bem maior e perigoso: DESCONFIANÇA. Todos desconfiam de todos: o Estado desconfia dos cidadãos, estes desconfiam daquele e cada um desconfia do vizinho, os empresários desconfiam dos trabalhadores e estes desconfiam daqueles... Vivemos tolhidos pela desconfiança. Imagino que esta atitude comportamental coletiva tenha porventura origem no medo interiorizado durante o Estado Novo, mas a continuarmos assim não será possível - diria mesmo impossível - construir uma sociedade cujo fundamento seja a responsabilização e não os procedimentos e as regras, mesmo que elas existam. Continuamos a teimar numa sociedade onde prevalece a culpa e o castigo em vez da aprendizagem da responsabilidade. Esta forma de ser, de estar e de actuar é transversal a toda a sociedade portuguesa e está presente em todas as instâncias, desde a mais pequena instituição da Sociedade Civil até às mais altas esferas do Estado, passando por pequenos poderes instalados em vários patamares da sociedade. Sé é verdade que esta desconfiança assenta em factos concretos que a ela conduzem ou, pelo menos, que em muito contribuem para que se mantenha, a verdade é que não existe um esforço ou gestos que pretendam combater esta terrível doença. Ela é perigosa não apenas porque nos impede de construir um futuro coletivo onde a maioria se reveja e com o qual se identifique, mas sobretudo porque cria espaços propícios ao autoritarismo, a uma justiça enviesada administrada na rua, fragilização das instituições democráticas, o que significa que o nosso espaço de liberdade será cada vez mais reduzido ou no qual os nossos movimentos e opções terão cada vez menos voz. Serão muitos os gritos, mas cada vez menos a VOZ que se faz ouvir.

Tentem ser felizes em seara de gente, assumindo o risco de confiar cada vez mais no outro.

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