A FALSA DIGNIDADE DOS INDIGNOS OU A HUMILHAÇÃO DOS INDIGNADOS

Este curto período entre a vitória do Syriza - 26 de Janeiro - e o último sábado, dia 20 de Fevereiro, em que a Grécia ocupou as principais páginas dos jornais e a abertura de telejornais, foi o tempo suficiente para que algumas brechas se abrissem tanto no seio do Syriza como nas instituições europeias. O problema é que enquanto as brechas que se abrem no campo Syriza podem ser prejudiciais para os próprios gregos e para toda a Europa, as que se abrem no seio das instituições europeias podem revelar-se benéficas para o futuro da Europa. Não sendo ingénuo, sei que nem o Syriza tem o condão de resolver todos os problemas da Grécia e, sobretudo, dos gregos, nem a União alterará o seu rumo como se um milagre acontecesse. Também sei que o governo grego navega em águas revoltas e que o populismo que tanto o atrai ou a aliança governamental com a direita, podem ser factores de risco elevado que rapidamente pode levar ao desmoronamento aquando das primeiras brechas. Este é um risco que deveria preocupar os líderes europeus - se líderes fossem ! -, porque o falhanço do Syriza pode representar o vazio completo e abrir definitivamente a porta a movimentos radicais de extrema direita ( em comparação, o Syriza pode ser considerado moderado) ou a uma ditadura militar. Sabemos, se necessário for, que as cedências do governo grego não se ficarão por aqui, mas importa perceber que a Europa ao pretender encurralar a Grécia apenas estará a acelerar o seu fim e a caminhar para a demonstração cabal da incompetência dos seus líderes que mais não fazem que defender os interesses de uma oligarquia medíocre que vive à custa das instituições europeias e da ilusão dos povos. Este domingo, Manolis Glezos, ícone da resistência anti-nazi e da luta contra a ditadura dos coronéis, e uma das personalidades do Syriza, reagiu contra o acordo alcançado no sábado e apelou aos militantes para que reajam antes que seja tarde. As brechas que parecem abrir-se irão ter certamente consequências que, neste momento, dificilmente se podem prever. A este propósito, mas agora no campo das instituições europeias, era importante que duas das patéticas personagens de todo este processo: Wolfgang Schäuble (Ministro das Finanças alemão) e Jeroen Dijsselbloem (Presidente do Eurogrupo) refreassem um pouco os seus ímpetos, moderassem a linguagem e adotassem comportamentos mais de acordo com a democracia. Aliás, o comentário feito por Schäuble após o acordo alcançado não deixa qualquer dúvida quanto à personagem: "Os gregos vão ter certamente dificuldades em explicar o acordo aos seus eleitores". Esta curta frase merece alguns comentários também eles muito curtos:
  1. A frase em vez de deitar água na fogueira vem acirrar ainda mais os ódios que porventura começam a despontar contra os alemães, sendo certo que na Grécia será um sentimento bem vivo;
  2. O comentário, além de ser revelador de grande irresponsabilidade, mostra uma arrogância perigosa e um comportamento pouco digno de uma democracia;
  3. A forma como trata o governo grego, o seu Primeiro-Ministro e o seu Ministro das Finanças (porventura mais conhecedor e entendido numa área que um jurista, como Schäuble, por mais brilhante que seja, desconhece), referindo-se a eles como «Os gregos», revela um desprezo pela diferença, pelo confronto de ideias e, sobretudo, revela o desejo de humilhar o outro transformando o tabuleiro político numa batalha de poder.

Se acrescentarmos a isto - suficiente para que saísse de cena caso as instituições europeias tivessem um funcionamento democrático - todos os comentários que o próprio foi tecendo a propósito do exercício democrático do povo grego, estamos conversados quanto à personagem. Que confiança poderá merecer?

Quanto ao Presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, este é a mesma personagem que aquando da crise em Chipre - crise sobretudo bancária - teve a brilhante ideia de que fossem os depositantes, sem excepção, a pagar os erros do sistema bancário, ou seja, os aforradores com poupanças inferiores a 100 mil euros incluídos. Esta personagem foi a mesma que, na semana passada, momentos antes da entrada para a reunião do Eurogrupo trocou o texto de um eventual acordo discutido com o governo grego por um outro texto da sua autoria, apanhando de surpresa não apenas os gregos mas outros membros. Será que uma pessoa destas é digna de confiança?

Quanto ao governo português, as diversas reacções e comportamento que foi tomando ao longo do processo apenas se pode dizer que são inqualificáveis. Qualquer epíteto ou adjectivação que se aplique será sempre demasiado bondosa, pois será sempre difícil de qualificar um atentado à dignidade de um povo quando esse atentado é perpetuado pelo próprio governo. Toda esta comédia dramática atingiu o seu clímax com o papel de brinquedo ou de marioneta de Schäuble a que Maria Luís Albuquerque se prestou em Berlim. Prestar-se a um papel de pura vassalagem ou servilismo bacoco, ignorante e politicamente descabido não só me envergonha enquanto português como fere a dignidade de todo o povo português. Ninguém pedia ao governo, e não seria em nada aconselhável, que se colasse ao Syriza, mas entre essa colagem e o servilismo perante Berlim havia todo um espaço que um governo competente, capaz de defender os interesses do seu país e da Europa poderia e deveria ocupar. Infelizmente sabemos que pessoas há capazes capazes de passar por cima de todos os princípios, ignorantes ou indiferentes à ética, só para atingirem os seus próprios objectivos. Aliás, no currículo da Ministra das Finanças não faltam episódios semelhantes. Há gente que se sente confortável no papel de capacho, porque só assim pode ter a ilusão do poder. E comparar a dívida de uma qualquer empresa ou de um qualquer cidadão à dos países é não ter qualquer noção da dimensão política do que está em jogo. Estou certo de que Maria Luís Albuquerque já ganhou um qualquer lugar na Europa quando este governo for varrido (tal como o lixo) da cena política portuguesa. Pior do que foi o atentado da Troika à dignidade dos portugueses é quando esse atentado é feito pelo próprio governo. Quanto aos elementos que o compõem difícil seria sentirem a sua dignidade atingida, já que aos indignos dificilmente resta qualquer pontinha de dignidade.

A grande questão, o problema central, e nisso Yanis Varoufakis tem razão, é que a Europa não está interessada em resolver os problemas e perceber se há medidas que resultam melhor que outras, mas apenas que sejam cumpridas as regras de um jogo que se encontra viciado desde o início. Existe da parte das instâncias europeias - e de alguns países mais do que outros - o receio (e também uma pontinha de inveja) de que outras medidas possam ser mais eficazes, porque isso colocaria em questão a sua estratégia, o que fizeram e sobretudo o que não fizeram, e abriria espaço a uma grande contestação às próprias regras do jogo. E, importa não esquecer, que quem controla as regras do jogo tem sempre o poder discricionário de as aplicar consoante os interesses em jogo. Por isso tudo farão para que não exista qualquer brecha que as possa alterar. O que não se experimenta nunca se saberá se resulta ou não, ficará sempre a dúvida. É nesse tabuleiro que as instituições europeias jogam. A esperança é que o próprio jogo democrático se possa rebelar e voltar contra os que tudo fazem para o viciar.

Um dos problemas centrais do funcionamento da Europa reside na desvalorização crescente da Comissão, para a qual Barroso muito contribuiu, e a valorização desmedida do Eurogrupo, comandado pela Alemanha, o qual face aos interesses em jogo e a necessidade dos grandes manterem o poder, pouco se importa com as questões verdadeiramente europeias ou com o futuro da Europa. Não fossem os pedidos de desculpa de Juncker aos países intervencionados pela Troika e a Comissão teria passado despercebida em todo este processo, quando lhe caberia a ela a condução do mesmo. Esta deslocalização do poder de Bruxelas para Berlim, além de profundamente anti-democrática, é perigosa, pois seja por coincidências históricas ou outras razões, a verdade é que sempre que a Alemanha ganhou poder conduziu a Europa à ruína. Caso as agulhas não mudarem, infelizmente, é isso que acontecerá. Na própria Alemanha há sectores que se sentem pouco confortáveis com a estratégia seguida por Merckel. Segundo os jornais alemães, Helmut Kohl, antigo chanceler alemão democrata cristão, terá desabafado em 2011: "a pequena (Merckel) está em vias de acabar com a minha Europa". Mas mais do que isso, escrevia, em Junho de 2012, o ecologista e antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Toschka Fischer:
"Será que nós alemães compreendemos a nossa responsabilidade pan-europeia? Na verdade parece não ser o caso. Na realidade, a Alemanha raramente esteve tão isolada como hoje. Quase ninguém compreende a nossa política de austeridade dogmática, que vai ao encontro de experiências passadas sendo nós considerados como alguém que está na estrada errada ou que está francamente na contra-corrente". E termina lançando o aviso: "A Alemanha auto destruiu-se - e com ela o equilíbrio europeu - duas vezes ao longo do século XX, mas soube em seguida convencer o Ocidente de que tinha retirado as devidas lições dos seus erros passados. Foi desta forma - reflectida de forma viva na sua adesão ao projecto europeu - que a Alemanha obteve o consentimento para a sua unificação. Seria trágico e irónico que uma Alemanha unificada provoque a ruína, por meios pacíficos e com as melhores intenções do mundo, da ordem europeia pela terceira vez." (Citações do livro «Debout l'Europe !», de Cohn-Bendit e Verhofstadt). Fica o aviso. 

Sejam Felizes em Seara de Gente.

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