ORÇAMENTO: PARA ALÉM DOS NÚMEROS ESTÃO PESSOAS

O orçamento é, simultaneamente, o terminus de um processo e o início de um outro. Ele é o corolário de um longo caminho de trabalho, de análise e de reflexão sobre a realidade, das suas variáveis dinâmicas e da sua evolução ao longo de um ano, tendo como referência a execução orçamental do ano anterior. É a partir desse trabalho, e em diálogo com as várias opções possíveis, que se constrói uma proposta de orçamento para o ano seguinte, tendo em linha de conta que há variáveis que, por serem dinâmicas, se podem alterar, exigindo, por um lado, capacidade de previsão realista com base em dados e, por outro, desenho de cenários alternativos e medidas que apontem para um horizonte de esperança. Um orçamento onde não cabe uma certa dose de esperança, por mínima que seja, não só está condenado ao fracasso como não passa de um mero instrumento esvaziado de sentido e sem qualquer utilidade em termos de sociedade. Por isso, o orçamento é também o início de um novo ciclo e a oportunidade para corrigir o que correu mal ou menos bem durante o ciclo anterior. Por isso, mais que o orçamento importa ter em conta as grandes Opções do Plano, pois é esse documento que permite perceber o orçamento e o alcance do que nele está inscrito.
É como num edifício em ruínas substituirmos as portas e as janelas e pensarmos que assim evitaremos o ruir da estrutura. Nesse sentido, ao entrar no Parlamento para discussão e aprovação, o orçamento é uma construção onde apenas se podem dar alguns retoques, ou seja, uma pintura aqui e acolá, substituir uma ou outra janela ou porta. Não é possível alterar a estrutura, já que essa deveria ter sido construída ao longo de meses, apelando à experiência e saber de outros na procura de soluções para problemas mais complexos. De nada serve agora, numa atitude de desespero, apelar ao apoio de outros quando se passou o tempo a ignorá-los. Agora será demasiado tarde. Caso existam falhas na concepção, cálculo e construção da estrutura, o edifício acabará por ruir. O problema é que quando isso acontece os estragos são avultados e o número de vítimas considerável. Face ao que atrás foi dito, torna-se agora claro que muitas das expectativas de que um orçamento - e por força maior o actual - poderia ser profundamente alterado pelos parlamentares é pura ilusão. Não se reconstrói em dias o que levou meses - ou deveria ter levado - a construir. E, para dizer a verdade, e na opinião de cidadão, este orçamento parece condenado a ruir e a causar demasiadas vítimas quando o que lhe deveria estar subjacente seria precisamente o contrário, ou seja, evacuar atempadamente e preparar medidas para que o tsunami anunciado causado o menor número de vítimas. Poder-se-iam enunciar várias razões que fundamentam esta minha visão, deixo apenas algumas.
Primeiro, a sua gestação - o número de horas para se chegar a um acordo final -leva-nos a crer que se descurou o trabalho ao longo dos meses, não apenas do ponto de vista técnico, mas sobretudo arredando da discussão e da procura de soluções todos os que eram exteriores ao poder. Pior ainda, ficamos com a impressão que mesmo no seio da esfera do poder o diálogo franco e a discussão foram inexistentes.
Segundo, não se preparou o caminho para que chegados a este ponto - construção do orçamento - tudo fosse mais claro e entre o confronto de várias opções fosse possível escolher a melhor. Quando se nega sistematicamente a possibilidade de alternativas, difícil se torna optar, já que as opções não existem. Não deixa de ser confrangedor a falta de investimento e pensamento europeus que nos permitissem afirmar perante os credores uma outra estratégia que não fosse austeridade. Isto sem negar as nossas responsabilidades perante os credores. Nem com as alterações de discurso nas esferas internacionais (veja-se o caso do FMI) se nota qualquer inflexão. Esta ausência de estratégia e de pensamento face à Europa coloca-nos na incómoda posição de termos como principais aliados e apoiantes precisamente os nossos próprios carrascos. Esta situação é tanto mais incompreensível quando sabemos que poderíamos no espaço europeu procurar outros aliados mais próximos da nossa condição.
Terceiro e último aspecto, algumas das propostas contidas no orçamento, mesmo que em algumas haja recuo do Governo, mostram não apenas um despudor desmesurado e uma falta de sensibilidade gritante, mas também um vínculo ideológico perfeitamente claro, pese embora a falta de destreza e impreparação dos seus actores. Refiro, por exemplo, os cortes nos subsídios de desemprego de menor montante ou em pensões de reforma de menor montante, sem qualquer compensação, no caso dos idosos, no que se refere aos medicamentos. Num governo que se preze, que tenha uma perspectiva política de redistribuição e de solidariedade, este tipo de propostas seriam impensáveis. 
Esta gente não percebe que um orçamento não são apenas números, nem tão pouco modelos de computador ou joguinhos para políticos que se recusam a olhar a realidade. Num orçamento estão em jogo a vida de milhões de pessoas e, por isso mesmo, nunca deverá ser apenas um exercício financeiro, mas antes o esforço colectivo de procura de caminhos alternativos.
Estamos condenados a empobrecer porque, infelizmente, a gente que nos governa é demasiado pobre política e socialmente, não tendo sobre o futuro qualquer ideia. Este é um barco à deriva, com demasiada carga, que continua a confiar naqueles que o obrigaram a transportar demasiada carga e o obrigaram a zarpar quando já se anunciava a borrasca. 
Tentem ser felizes em seara de gente, porque felizmente ainda há gente que gosta de gente.

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