FIM DA SOCIEDADE DE TRABALHO?

"... a utopia tem como função dar-nos, em relação ao estado actual das coisas, o distanciamento que nos permite julgar o que fazemos à luz do que poderíamos ou deveríamos fazer" (André Gorz)

Após uma ausência um pouco mais prolongada, eis-me de novo na companhia dos poucos que me vão lendo, estejam ou não de acordo com o que escrevo. Desta vez, e a propósito de um artigo de António Guerreiro com o título  "O Fim da Sociedade de Trabalho" (Revista Atual nº 2066 | semanário Expresso, 02 Junho 2012), gostaria de sublinhar algumas questões sobre as quais já tenho escrito, mas que estão ainda longe de merecerem a atenção que por certo exigiriam. O citado artigo centra-se no pensamento do economista americano Jeremy Rifkin e do filósofo francês de origem austríaca, já falecido, André Gorz. Tanto um como o outro, embora de forma diferente, abordaram a questão do trabalho nas sociedades desenvolvidas, apontando para o fim das sociedades onde o trabalho é o motor da produtividade e da criação de riqueza.  "The End of Work" (1995)  de Rifkin e "Métamorphoses du Travail" (1998) de André Gorz, são as obras de referência. Penso que nenhuma delas se encontra traduzida em português.
Uma primeira questão, postulada por Rifkin, é que a evolução da produtividade de uma economia é inversamente proporcional à criação de empregos, o que significa que os empregos estão condenados a desaparecer. Ou seja, à medida que a sociedade evolui tecnicamente e aumenta a sua produtividade, menor é o número de empregos necessários à obtenção desse seu desiderato. O capitalismo tem como princípio o aumento da produtividade não com a preocupação da criação de riqueza e sua redistribuição, mas como forma de maximização do lucro, sendo-lhe indiferente as consequências que daí possam resultar. Mas aqui, o capitalismo esbarra com um problema: é que apesar de não necessitar de mão-de-obra, a sua sobrevivência continua a depender do consumo dos produtos e serviços que cria, ou seja, necessita de uma massa de sem-trabalho a que eu chamo de «produtores passivos», ou seja, ao consumirem permitem que se continue a produzir e também a permitir que uma massa muito pequena de trabalhadores continue com trabalho. E aqui coloca-se o problema de redistribuição da riqueza produzida, embora segundo duas perspectivas.
1. A perspectiva capitalista para quem a redistribuição de riqueza é um questão de sobrevivência do sistema, ou seja, redistribuir não numa perspectiva de justiça, mas no sentido de alimentar a massa dos «produtores passivos» com o objectivo de consumirem e dessa forma manterem o sistema.
2. A perspectiva da justiça, coesão social e equidade para quem o problema da redistribuição de riqueza de forma equitativa é uma questão de sobrevivência, não do sistema, mas da sociedade como um todo, pois aumentando os níveis de exclusão - seja de que tipo for - aumenta-se proporcionalmente os riscos de implosão, a destruição.
A questão central, parece-me, é que nos devemos questionar não apenas sobre a criação de riqueza e sua redistribuição, mas sobretudo o que significa produzir riqueza, qual a medida utilizada que nos permite aferir se foi criada riqueza ou se, pelo contrário, destruímos riqueza. Como já referi num outro escrito, esta é uma questão sobre a qual a esquerda - a de futuro e não a que anda entretida com questões de poder - deveria reflectir e produzir pensamento crítico. Se aquilo que se produz não justifica, pela sua utilização ou pela sua finalidade, a quantidade de recursos naturais utilizada - património herdado e que vamos deixar às gerações vindouras -, significa que o balanço final não será positivo, embora aparentemente o seja, já que o que se gastou é superior ao benefício.  Basta olhar, por exemplo, para a quantidade de lixo produzido ou o desperdício de recursos naturais no fabrico de produtos que apenas têm como objectivo alimentar o consumismo e encher os bolsos de accionistas ávidos de posse. A tão apregoada Responsabilidade Social não se situa ao nível da distribuição de migalhas (a boa consciência), mas na forma como se pensa todo o sistema produtivo e a sua relação com a comunidade, não apenas local, mas global. Esta perspectiva centra o debate na questão do desenvolvimento e não apenas no progresso. Aliás, penso que um dos equívocos das nossas sociedades, tanto da direita como da esquerda, foi o de identificar o progresso científico, tecnológico, e mesmo económico, com o desenvolvimento das sociedades como se a evolução do primeiro implicasse automaticamente a evolução do segundo. Na verdade, as soluções actuais, sejam as vidas da esquerda, seja as vindas da direita,  ainda se enquadram no sistema em que o trabalho é o centro nevrálgico. Basta atentar no discurso sobre o desemprego, em que este é tratado como se todos tivessem perante ele e perante o trabalho o mesmo comportamento e expectativas. Ora isso não é possível e o discurso político, sobretudo neste momento, devia dar a devida atenção ao facto. Ou atente-se ainda no facto de o desemprego estrutural, independentemente da conjuntura, ter vindo a aumentar nas últimas décadas. O sistema capitalista actual, ao contrário do que se pensa, não só não tem criado emprego como, ainda por cima, o tem destruído. Ora, estas são questões muito arredadas do debate político. Poderia ser de outra forma? Penso que não. É natural que as sociedades necessitem de momentos de transição, na maioria das vezes muito penosos para as populações, até que se encontrem novos equilíbrios. O que não é natural é que a esquerda continue a ignorar o debate destas questões. A esquerda perdeu a capacidade de propor utopias, ou seja, de propor um horizonte de futuro que mobilize gerações e vá muito para além do nosso tempo histórico. Os paradigmas de raciocínio são semelhantes aos da direita, apenas mudando os objectivos e os meios. Quanto à direita, por natureza pragmática, é natural que tente prolongar o status-quo que lhe é favorável, tentando adaptar-se às circunstâncias e até integrando no seu discurso algumas das reivindicações que seriam mais próximas da esquerda.
Deixo-vos algumas questões sobre as quais me parece importante reflectir e encontrar caminhos inovadores que permitam a construção de sociedades verdadeiramente inclusivas e mais justas, embora tendo consciência que cada um de nós é, na sua essência, não inclusivo. Ter consciência dessa nossa limitação é também redescobrirmo-nos como seres inclusivos.
  • Que se entende por sociedade de «Bem-estar»? O que significa para nós «Bem-estar»?  Aliamos o seu significado à posse ou à forma de estar e pensar a nossa relação com os outros? A resposta a estas perguntas prende-se com a forma como olhamos para o património que herdámos (os recursos naturais) e a forma como o gerimos.
  • Que tipo de riqueza desejamos produzir? Ou seja, que significado atribuímos à riqueza criada e de que forma será redistribuída?
  • Que tipo de organização societal pretendemos e que espaço é dado ao trabalho enquanto forma de criatividade e não apenas como forma de aquisição de meios de posse?
  • Que lógica podemos introduzir ou inventar para que o progresso não seja um consumir de recursos e criação de uma riqueza que nos empobrece ao delapidarmos os recursos que não nos pertencem, mas que seja um progresso sustentado nas pessoas e na sua capacidade de tecerem relações? Ou seja, que tipo de desenvolvimento, diria antes evolução, pretendemos?

Este é um longo debate, que considero fundamental, e que não cabe neste escrito, mas é importante que se faça se queremos deixar aos nossos filhos e netos algo de que se possam orgulhar.
A este propósito, e para finalizar, importa também ter em atenção o livro do sociólogo, investigador da Universidade de Coimbra, António Casimiro Ferreira com o título "A Sociedade da Austeridade e o Direito de Trabalho de Excepção", no qual o autor chama a atenção para o facto de as alterações à legislação laboral nada terem a ver com o aumento da produtividade, competitividade ou crescimento, mas apenas com uma questão de poder, ou seja, desequilibrar as relações laborais entre as forças em presença, trabalhadores e empregadores, fragilizando a primeira e dando mais poder à segunda. Por isso, trata-se de uma questão ideológica e não de eficácia. O carácter de urgência devido ao momento que vivemos, como sublinha o sociólogo numa entrevista ao jornal «Público (23/04/2012), tem como consequência o criar de condições que levam à abolição do direito do trabalho - "eminentemente colectivo" - das relações laborais, institucionalizando a individualização da relação laboral.
É caso para aconselhar os nossos governantes a seguirem o conselho do próprio Primeiro-ministro: emigrem. E já agora, que seja de vez!
Sejam felizes em seara de gente.

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