CARIDADE OU JUSTIÇA SOCIAL?

"O trabalho é a melhor e a pior das coisas: a melhor, se for livre, a pior, se for escravo"
Émile Auguste Chartier (Jornalista e filósofo francês, 1868-1951)

Já quase tudo (ou mesmo tudo do essencial) foi dito e escrito sobre a operação Pingo Doce no passado 1º de Maio. Contudo, e apesar de correr o risco de repetição, gostaria de aqui sublinhar dois ou três aspectos.
O primeiro, e isso mesmo foi escrito por alguns cronistas, há que perguntar por quê o 1º de Maio?! E não tem qualquer cabimento o argumento - que alguns jornalistas aceitaram acriticamente - de que se pretendeu dar a possibilidade a grande número de pessoas de usufruírem da oportunidade, como se esse fosse o único feriado e não houvesse no calendário fins-de-semana. A atitude revela total desprezo pelo 1º de Maio e pelo que ele representa, ou seja, pelos próprios trabalhadores. Verdade seja dita que o Pingo Doce não foi o único a estar aberto, mas foi o único que levou a afronta ao nível da provocação.
O segundo ponto, o qual também foi referido por vários jornalistas e cronistas, é o facto de se ter tratado de uma atitude de desrespeito pelos próprios consumidores. Mas, mais do que isso, foi a humilhação pública dos consumidores, seus clientes, ao sobrevalorizar ou pôr a nu o que de mais negativo existe no humano quando confrontado com a necessidade e a sobrevivência. Pior ainda, não têm consciência das consequências que essa exposição pública pode originar caso a crise se agudize e as necessidades sejam ainda maiores. As pessoas até admitem ser utilizadas, mas ao tomarem consciência do facto pode despontar nelas um certo desejo de vingança. Acresce ainda ser demasiado perigoso e imoral aliciar os consumidores, com contrapartidas aparentes nem sempre entendíveis, a investirem o dinheiro que não possuem. Imagino as dificuldades de muitas dessas pessoas gerirem o seu orçamento familiar mensal, apenas porque investiram mais em consumo do que deviam, porque lhes acenaram com 50% de desconto. Essa foi a fórmula utilizada - e continua a sê-lo - pelos bancos e o resultado foi o que se viu. Dir-me-ão que esse é um problema dos próprios. Apesar de verdadeira a observação, ela revela o quanto ignorantes somos na avaliação que fazemos das necessidades dos outros e, por extensão, da pobreza. Esquecemos com frequência de que a maior responsabilidade é de quem detém o poder - seja ele qual for - e se aproveita da fragilidade e da necessidade de outros para daí retirar dividendos.
Terceiro ponto, e para mim o mais importante, é o que essa atitude significa em termos de visão da sociedade e do mundo. Trata-se de perceber a diferença entre Justiça Social e Caridade. Apesar do tema sobre a Justiça Social ser caro à Esquerda, não me apercebi que alguém tenha chamado a atenção ou sublinhado esse aspecto. Esse seria um ponto crucial para a esquerda, ou seja, mostrar como este tipo de capitalismo, pese embora todas as boas intenções, se promove à custa da miséria dos que entretanto empobrece. Confesso que nem ouso classificar a essa atitude de caridade, já que, na minha visão cristã, caridade radica no amor e na gratuidade, sem dela pretende retirar qualquer vantagem. É, afinal, a questão da parábola bíblica das moedas e da viúva. Mas isso são contas de outro rosário!
Justiça Social seria pagar o preço justo aos produtores e fornecedores, pagar-lhes a tempo  e a horas, não lhes devolver ou recusar pagar os produtos que pereceram precocemente como se fossem eles os responsáveis. Justiça Social seria não criar expectativas nos produtores, "obrigando-os" a fazer investimentos para posteriormente lhes imporem o preço! Aliás, no que toca a este aspecto é necessário ter em atenção o que está a acontecer com o pescado e dos contratos com armadores, criando quase um regime de exclusividade. Há zonas em que nem os restaurantes já conseguem encontrar o pescado de que necessitam, salvo se o adquirirem nessas superfícies. Justiça Social seria pagar o salário justo aos seus funcionários atribuindo-lhes os direitos justos.
Caso pretendem praticar a caridade - e têm o direito de a praticar - são várias as formas, seja através de Instituições seja directamente nas lojas. O problema é que esta gente gosta de se promover à custa da desgraça alheia, mas foge a sete pés quando se lhes fala em Justiça Social. Não basta dizer que se criam empregos, quando se colocam produtores em dificuldades e em grande dependência ou quando a qualidade do emprego criado está longe de ser a desejável.
Quanto ao resto, caberá às autoridades de regulação e fiscalização analisarem o que aconteceu. Mas não deixa de ser curioso que a concorrência não se tenha pronunciado sobre o assunto! Quanto ao governo, dá-lhe jeito este tipo de atitudes e, como disse o ministro da economia, é frequente noutros países. Portanto, descansemos porque esta é a mais perfeita das normalidades.
Tentem ser felizes em seara de gente.


Comentários

  1. Creio ser oportuno registrar que "caridade" na acepção ibero-católica é fingimento puro. Serve mesmo para aplacar o pesar e sentimento de culpa que católicos carregam.
    Em particular, o meu querido Brasil foi apodrecido por essa mazela. Apenas no século XXI estamos nos libertando dessa imundície e criando as condições para o Desenvolvimento e Justiça Social. E dando adeus a essa caridade.
    Por isso, não me cansarei de dizer:
    BRASIL DESENVOLVIDO e BRASIL CATÓLICO são possibilidades excludentes.
    f_l_gomes@hotmail.com

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