MICROCRÉDITO, DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO, DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA


Por me parecer de grande actualidade, partilho aqui a intervenção feita, enquanto Secretário-geral da Associação Nacional de Direito ao Crédito, no encontro organizado pela revista «CAIS», em 29 de Maio 2009, no Centro Jean Monnet, o qual teve como lema «FORUM EUROPA -PARTICIPAÇÃO NO PROJECTO EUROPEU». Trata-se apenas de uma opinião, mas é na partilha da diferença que poderemos encontrar o caminho. 

1. INTRODUÇÃO
Antes do início desta nossa conversa, quero expressar, em nome pessoal e da Associação Nacional de Direito ao Crédito, o nosso muito obrigado à CAIS pelo convite que nos foi endereçado para participarmos neste fórum. Esta é uma iniciativa que muito prezo e tendo já por diversas vezes participado em iniciativas promovidas pela CAIS. É sempre com muito gosto que o faço. 
Devo confessar que me sinto na posição incómoda de tratar de uma temática que, pela sua complexidade e importância, mereceria certamente outro orador, já que não sendo especialista de coisa alguma, muito menos da matéria em causa, receio por isso correr o risco de gorar as vossas expectativas, o que, para aqueles que disponibilizaram o seu tempo, será totalmente imerecido. As minhas desculpas pelo facto.
Tentarei contudo, na perspectiva de um cidadão activo e empenhado, com um olhar sobre a realidade, partilhar com vocês algumas das minhas preocupações e reflexões. Devo, contudo, acrescentar que aquilo que tenho para vos dizer já outros o reflectiram e o disseram ou escreveram muito melhor do que eu alguma vez serei capaz. Peço-vos, desde já, que não esperem mais do que isso.



2. DESENVOLVIMENTO
Há que perguntar, em primeiro lugar, sobre o que falamos, que tipo de desenvolvimento se deseja. E este terá que ser um esforço colectivo. Podemos ter várias vias, mas teremos que estar de acordo sobre alguns princípios. Queremos um desenvolvimento que tenha como fundamento uma base especulativa ou um desenvolvimento que tenha uma base relacional e solidária, produtiva? Ou seja, em que o centro são as pessoas inseridas nos seus territórios e não a maximização do lucro.
Não é possível, não é sustentável:
- Um desenvolvimento que gere pobreza e exclusão;
- Um desenvolvimento que gere relações desiguais entre países e territórios;
- Um desenvolvimento que tenha como base a partilha de poder - económico, financeiro ou político - entre os poderosos, deixando uma grande multidão entregues ao seu destino;
- Um desenvolvimento que na procura da maximização do lucro esbanje recursos que são património de todos e maltrate o ambiente;
E poderia continuar a enunciar exemplos.
Sabe-se que a mudança não é fácil – trata-se de um longo caminho – mas ela começa em cada um de nós e na nossa capacidade de nos juntarmos a outros para descobrirmos novos caminhos. Ela não depende apenas de nós, não depende sobretudo de nós, mas começa certamente em nós.

            2.1. Desenvolvimento como acto de consciência
Desenvolvimento é, por isso mesmo e em primeiro lugar, um problema de tomada de consciência de cada um de nós e também da sociedade no seu todo. Não acredito muito no efeito transformador através do poder legislativo, embora seja importante e possa ajudar na evolução. Pessoalmente, acredito sobretudo no poder transformador dos movimentos de cidadania. As revoluções de mentalidades não são feitas através de decreto.
Trata-se por isso, também, de um problema de mentalidades. E nós, enquanto consumidores, temos a nossa quota de responsabilidade, já que, e apesar de várias condicionantes, ainda temos o direito e a liberdade de opção. E não será indiferente optarmos pelo produto X ou Y, tendo em conta os princípios e o grau de responsabilidade social das empresas que os produzem.
Deixo uma questão para cada um de nós: Qual o significado que atribuímos quando falamos no nosso padrão de vida? Queremos nós, países desenvolvidos, continuar a manter o que chamamos o nosso padrão de vida, o qual implica consumo crescente de energia e produção de toneladas de lixo e de resíduos? E como nos relacionamos com os países em vias de desenvolvimento? A nossa tomada de consciência começa precisamente nesta questão. Estaremos nós dispostos a prescindir de algum «bem-estar» que pensamos adquirido e ao qual nos julgamos com direito? Que significado atribuímos ao «Bem-estar»?

            2.2. Desenvolvimento e Informação
Mas para que as nossas opções sejam conscientes é necessário que tenhamos acesso à informação e que exista transparência na informação e também nos processos de produção. É necessário que também os países em vias de desenvolvimento tenham não só acesso à informação, mas que também eles sejam veículos de informação.

            2.3. Dinâmica Territorial
Na era da globalização ou da mundialização, o desenvolvimento assenta cada vez mais numa lógica dos territórios e na solidariedade inter-territorial e inter-países. É essa lógica que teremos que aprofundar e desenvolver. Isso não significa ficar confinado ao território, mas implica a procura e criação de redes solidárias com o exterior na procura de equilíbrios benéficos para todos.

3. MICROCRÉDITO E DESENVOLVIMENTO
De que forma o microcrédito se encaixa em tudo isto?!
Poderia deixar-vos apenas com a sugestão de leitura do livro mais recente do Prof. Muhammad Yunus, «Um Mundo sem Pobreza», cuja leitura ajuda a perceber como o microcrédito é, sem dúvida, um instrumento não só de luta contra a pobreza e a exclusão, mas um instrumento de pedagogia sobre o desenvolvimento e um potenciador do mesmo. Nele, Yunus defende a empresa social e também a criação de um Mercado de Ações separado, só de Empresas Sociais, o que facilitaria os investimentos nessas empresas e aumentaria a liquidez e transparência. É uma obra sobre a qual vale a pena reflectir. Podem também olhar para os princípios do Grameen Bank e perceber a relação estreita entre microcrédito e desenvolvimento.
Deixo-vos alguns apontamentos sobre o microcrédito para que percebam um pouco melhor a sua relação com o desenvolvimento.
- Instrumento de luta contra a pobreza e contra a exclusão;
- Fomento do Empreendorismo Inclusivo;
- Pedagogia, sobretudo através do acompanhamento, potenciando não só uma melhor gestão do negócio mas também do próprio projecto de vida;
- Dinâmicas territoriais ou locais (no meio urbano é um pouco mais complicado), tentando dinamizar, através de pequenos negócios, territórios de baixo dinamismo económico;
- Centra a sua acção nas pessoas, na confiança mútua, nas suas capacidades e competências;
- Potencia a capacidade relacional da pessoa com a sua envolvente;
- Insere a pessoa através da via económica, possibilitando-lhe, através do auto-emprego ter uma vida digna.
Aliás, existe uma grande diversidade de experiências da Economia Social e Solidária que tentam dar um outro cunho e sentido à palavra Desenvolvimento. Caso tenham interesse, deixo-vos indicação de uma outra obra, “Dicionário Internacional da Outra Economia», coordenado pelo Prof. Pedro Hespanha, do CES da Universidade Coimbra.

4. DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA
            4.1. Qualidade da riqueza produzida
Para que a riqueza possa ser distribuída é necessário antes de mais que ela exista, que tenha sido criada. É uma evidência, mas sobre a qual nem sempre temos consciência quando utilizámos ou reivindicamos os recursos. Também não me parece que tal evidência possa servir de argumento àqueles para quem os gastos sociais são um desperdício, pois não sei se teremos o mesmo conceito de riqueza.
Hoje, mais do que produzir riqueza em quantidade, importa que nos questionemos sobre a qualidade da riqueza criada. E esta é, na minha opinião, uma questão central na discussão do tipo de desenvolvimento. Parece-me que esta é uma questão fundamental em termos de futuro e do tipo de desenvolvimento – ou dos paradigmas que o sustentam – que queremos deixar como herança às gerações vindouras.
Por exemplo, quais os recursos utilizados na produção dessa riqueza, ou seja os recursos que subtraímos ao património natural da Humanidade. Ao utilizarmos recursos existentes ou ao deteriorarmos outros estamos não só a diminuir o património a que as gerações futuras têm direito, mas também a impedir que usufruam de outros.
Medidas que conduzam a uma maior racionalidade na utilização de recursos não devem ser repercutidas na parte final da cadeia – o consumidor – mas logo a montante, pois só assim se pode condicionar a produção de bens que pretendem responder, muitas vezes, a necessidades duvidosas ou a necessidades induzidas. Embora, como já disse, nós enquanto consumidores tenhamos também responsabilidades.
De nada adiantará dizer que criamos riqueza se isso implica que no futuro seremos ainda mais pobres. A criação de riqueza hoje não pode ser sob hipoteca do futuro. O simples facto de criação de riqueza não implica por si só que o saldo final, em termo de custos, seja positivo.

4.2. Como redistribuir a riqueza?
Quanto à redistribuição da riqueza – e tal como o desenvolvimento -, num mundo globalizado, importa sublinhar que embora seja um problema de cada país, de cada espaço político e económico, é também um problema cuja solução só pode ser global. Trata-se de encontrar novos mecanismos de regulação e plataformas de entendimento que tornem as trocas entre países mais justas e as suas relações mais igualitárias.
Contudo, no que toca à redistribuição de riqueza há factos que não podemos ignorar e sobre os quais é urgente que tomemos opções muito claras.
- É inadmissível, imoral, que permaneçam na pobreza pessoas inseridas no mercado de trabalho. Como é possível falar de solidariedade, de redistribuição, quando negamos a cidadãos que produzem riqueza o direito a uma vida digna?!
- É inaceitável, imoral, certos vencimentos de natureza especulativa.
- É inadmissível, imoral, a facilidade com que alguns gestores encerram as suas empresas para logo a seguir abrirem outra empresa do mesmo ramo ou diferente.
Deixem-me referir, em jeito de parêntesis, algo que me causa alguma confusão e que tenho alguma dificuldade em entender, embora perceba o fenómeno. Trata-se da Responsabilidade Social das Empresas. Todos ouvimos falar da preocupação e dos relatórios que se vão fazendo. Ainda bem que assim é, pois significa que alguma coisa vai mudando. O que eu não percebo é como é que a Responsabilidade Social das Empresas tem que ser algo tratado de forma tão especial. Não será algo inerente à condição da própria empresa? Enquanto unidade de produção – de bens ou serviços – composta por pessoas, integrada em determinado território, tecedeira de relações mercantis ou outras, não tem ela, desde logo, responsabilidades para com as pessoas que a compõem, para com o território onde se integra (seja em relação às pessoas ou ao ambiente), para com todos aqueles com quem se relaciona?! Só o facto de existir não lhe confere desde logo responsabilidades sociais?
Isto apenas nos mostra o quanto ainda estamos longe – e acredito que um dia lá chegaremos – de uma consciência social activa e actuante.
Nas sociedades actuais e a forma como estão organizadas, sendo o pleno emprego pura ilusão, a distribuição da riqueza é uma problemática que potencia, por um lado, os conflitos, mas que, por outro, poderá ser veículo de transformação, na medida em que nos confronta com uma realidade para a qual teremos que obrigatoriamente encontrar respostas. Ela implica nova organização das sociedades, uma nova visão do trabalho e sua valorização, da produção.

5. O CONTEXTO DA UNIÃO EUROPEIA
Sublinhe-se que estas questões ultrapassam o nível nacional e só serão resolúveis a um nível muito mais alargado, muito mais colectivo. A Europa, espaço de pertença que é o nosso, deve ser capaz de ousar trilhar novos caminhos.
O problema da União Europeia é que todos queremos estar na Europa, mas ninguém quer ser europeu.
Quando se discutem os Fundos europeus todos nós nos achamos no direito de reivindicarmos, mas poucos têm consciência de que para recebermos esses milhões alguém teve que os pagar e que serão certamente contribuintes como nós. Ora este simples facto deveria obrigar-nos a ter um outro olhar – e já agora rigor – sobre a utilização desses recursos, uma vez que eles representam a solidariedade de outros para connosco.
Importa que a Europa crie condições sociais e políticas que possam conduzir-nos à descoberta, à invenção, de novas motivações para uma vida colectiva na Europa, mas, simultaneamente, também em cada um dos Estados que a compõem. Trata-se de encontrar razões que nos levem a sentir cidadãos europeus, com direitos e deveres, sem que cada Estado perca a sua identidade.
Este caminho passa obrigatoriamente por um outro modelo de desenvolvimento, em que as pessoas sejam o centro, e tendo em conta as exigências ecológicas e a redução das desigualdades.
Para isso, temos necessidade de uma Europa forte, não para dominar o mundo, mas para conservarmos a capacidade de decidirmos colectivamente o futuro. E, por enquanto, são muitas as fragilidades da Europa, nomeadamente a dificuldade dos Estados em definirem políticas comuns em algumas áreas que têm grande peso a nível nacional. Também a forma de eleição dos deputados, muito dependente das políticas nacionais, exige alguma reflexão. Note-se, a título de exemplo, que o Parlamento Europeu, apesar de ser eleito por sufrágio universal há 30 anos (1979), continua com poderes limitados.
Como um dia disse Jean Monnet, «Nós não coligamos Estados, nós unimos Homens».

6. CONCLUSÃO
Não nos iludamos, a procura de novos paradigmas implica processos dolorosos, implica renúncia, implica opções. Estaremos nós preparados e dispostos a tudo isto?
Sabemos
- que o tempo histórico é bem mais longo que o tempo que nos é dado viver;
- que os processos de mudança, sobretudo de mentalidades, são longos e atravessam várias gerações;
mas isso não deve ser argumento para adiarmos a procura de soluções, pois temos a responsabilidade de deixar a outros, se não as soluções, pelo menos o legado do esforço e da procura, de um caminho percorrido que eles possam continuar.
Talvez não saibamos ainda quais as soluções mais adequadas, mas saberemos seguramente que o ponto a que chegámos exige, a todos enquanto colectivo e a cada um de nós enquanto cidadãs e cidadãos activos, responsáveis e actuantes, o esforço da procura de novos caminhos.
Essa é a verdadeira esperança, a utopia a cumprir, ou seja, acreditar num mundo melhor, mais justo, onde a diferença tenha lugar no espaço colectivo, apesar de sabermos que nunca o poderemos viver.
Muito obrigado.
Lisboa, 29 de Maio de 2009.
José Centeio
Secretário-Geral da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC)

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