CONFIAR DEMASIADO EM QUEM NÃO SE DEVE

Uma democracia só funciona e só será devidamente vivida e respeitada pelos cidadãos e cidadãs se os seus pressupostos forem sólidos, coerentes e justos. Dito assim, pode parecer vago, mas se vos disser que não é condição suficiente que exista uma democracia formal, mas que, para além da formalidade, seja necessário que ela funcione de facto, o que atrás foi dito parece fazer sentido. Ou seja, não basta que existam instituições que suportem a democracia, é necessário, imprescindível mesmo, que essas mesmas instituições tenham perfeita consciência do seu papel e dos seus limites, que tenham procedimentos coerentes e transparentes, que a sua relação, quer entre elas, quer com os cidadãos assentem na igualdade, na justiça, na transparência e no respeito mútuo. Passarei a enumerar alguns dos pressupostos que julgo serem essenciais a uma democracia não apenas formal, mas que funcione de verdade.

1. Respeito pela Lei Fundamental - a Constituição - em todas as situações a não sujeita a interpretações ao sabor das circunstâncias e dos interesses do momento. Pode não se estar de acordo com a Lei Fundamental - por isso, à passível de revisões - mas nunca em momento algum ela pode servir de justificação à incompetência e encontrar nela as razões da inércia. Isso significa respeitar o Tribunal Constitucional e as decisões que dele emanam. Não respeitar este pressuposto é fingir a democracia.

2. O Poder Legislativo deve respeitar-se a si mesmo e ter consciência de que representa o povo que o elegeu e não os interesses partidários de quem o promoveu ou os interesses particulares de quem o comprou. É essencial que o poder legislativo, que é muito mais do que produzir leis, seja, em nome dos cidadãos e cidadãs que o elegeram, um efectivo vigilante do Poder Executivo, o qual não foi directamente eleito. Os Partidos, de uma vez por todas, têm que perceber que os deputados eleitos não estão ao seu serviço, mas sim ao serviço dos eleitores. Não basta prestar contas apenas nos actos eleitorais - isso é a democracia formal -, mas importa que os deputados sejam interlocutores e porta-vozes de quem os elegeu. Matérias haverá em que a disciplina partidária é fundamental, mas muitas outras há em que a liberdade e o compromisso assumido com os eleitores deve prevalecer. Importa que quem decide representar o povo se sinta livre de qualquer compromisso de interesses que não sejam os do bem comum. Importa acabar com ideia errada e populista de que a produtividade dos grupos parlamentares se mede pela quantidade de propostas e projectos de lei apresentados, mesmo sabendo à partida que muitos não verão a luz do dia. É sabido que Portugal tem demasiadas leis, muitas vezes contraditórias e incoerentes, que não funcionam, mas que atrapalham e aumentam os custos em diversas áreas. Também é público que muitas dessas leis foram mal construídas por falta de experiência, falta de conhecimento e falta de fundamentação teórica (reflexão) do legislador ou então, como também por aí se diz, porque os interesses privados se sobrepuseram aos interesses colectivos, ao bem comum. Há que saber construir uma democracia assente na responsabilização e não apenas em procedimentos, ou seja, culpabilização através da lei. É preferível ter um sistema legislativo curto, mas coerente, que seja célere e funcione, em vez de um sistema longo (demasiadas Leis), incoerente, ingovernável e que não funcione.

3. O Poder Executivo tem que ser transparente, verdadeiro, justo e honesto nas suas propostas. Não pode adoptar a estratégia da caça ao voto para chegar ao poder e depois, como se o antes não existisse, a estratégia da culpabilização de outros como forma de justificação da sua alteração estratégica. Com todos os instrumentos hoje disponíveis não é desculpa o desconhecimento da verdadeira situação. Quem pretender assumir o poder tem que assumir por inteiro a herança, de forma crítica e não como desculpa. Importa que o Governo tenha consciência de que é um poder executivo e que embora decidir seja competência sua, as principais opções cabem sempre aos eleitos pelo povo, ou seja, à Assembleia da República. Isso significa que a existência de uma maioria não desresponsabiliza o Executivo do diálogo com a Oposição, antes pelo contrário, a responsabilidade é ainda maior, porque apesar das decisões caberem à maioria, é no respeito pelas minorias que se afere a qualidade de uma democracia. Os deputados representam quem os elegeu e nunca o Executivo. E aqui entronca uma vertente que um governo de uma democracia nunca deverá esquecer: há que ter consciência que a uma das suas funções fundamentais é a de proteger, em primeiro lugar, os mais desprotegidos e mais vulneráveis da sociedade, aqueles que no confronto com o quotidiano estarão sempre em desvantagem e que são também os menos munidos para defenderem os seus direitos. Em momentos de crise esta sua função é ainda mais exigente e ignorá-la é não entender o sentido da justiça democrática e da igualdade.

4. A Justiça é um dos pilares da democracia e por isso se diz que não existe verdadeira democracia se não existir uma verdadeira justiça ou se esta não funcionar. A Justiça não se pode confundir com justicialismo, nem os juízes são justiceiros ou arautos da moral democrática. Isso é próprio de outros regimes que não os democráticos. Não cabe aos juízes, no cumprimentos das suas funções, julgarem moralmente os comportamentos de quem quer que seja. A eles cabe-lhes, enquanto representantes do poder judicial, avaliar os desvios face à lei e, se for o caso, julgá-los perante a mesma lei. Não lhes cabe fazer julgamentos subjectivos, baseados em preconceitos morais, ideológicos ou outros, mas, tanto quanto possível, objectivar os desvios face à lei que regula as relações em sociedade. Para isso, cabe-lhes isenção, respeito pelo outro, independentemente da sua condição, ideologia, religião ou postura perante a sociedade, desde que não desviante face à lei. Ao poder judicial, enquanto tal, não lhe cabe julgar as opções políticas, não se percebendo, por exemplo, a existência de um sindicato de juízes. Quando os juízes, mais do que representantes da Justiça pretendem ser justiceiros, significa que a democracia está minada e a qualquer momento pode explodir.

5. Ao Presidente da República (no caso de uma República), sendo o mais alto representante do estado, eleito directamente pelos cidadãos e cidadãs, cabe o papel de representar e de respeitar os anseios e expectativas de quem representa. E não apenas daqueles que o elegeram. Criar pontes, valorizar o património comum, sem se inibir de chamar a atenção para o que vai contra as expectativas dos cidadãos, nomeadamente o não aceitar que um governo, seja ele qual for, engane despudoradamente os cidadãos fazendo o contrário do que prometera na conquista do poder.

Finalmente, deixo-vos algumas perguntas e cada um retirará delas as respostas que o seu sentido crítico lhe ditar.

1. Não deveria um Presidente, antes de promulgar qualquer diploma que ponha em causa interesses estratégicos, exigir do governo um amplo debate? Ou será que os interesses privados se sobrepõem aos interesses colectivos?

2. É normal que num Estado de Direito se prendam cidadãos, independentemente de quem seja, apenas com o único objectivo da obtenção de prova ou para obter fundamentação para as suposições não devidamente investigadas? É licito utilizar a prisão preventiva como chantagem para alteração de depoimento? Não serão estes métodos semelhantes aos de uma falsa justiça de outro tipo de regimes?

3. Que dizer do despudor de políticos ou altos representantes do Estado que continuando ligados a grupos de interesses privados diversos, têm o descaramento de opinar sobre a crise, sacrifícios e corte de direitos?

4. Sendo verdade que o segundo governo de Sócrates (apesar de muitos propositadamente esqueceram o primeiro, o qual já foi considerado um dos melhores do período democrático) ficará para sempre ligado à entrada da Troika no nosso País (sendo essa apenas parte da verdade), não será, em termos de futuro, bem pior a venda de empresas estratégicas (algumas delas bastante lucrativas) tornando o País mais pobre e dependente? A venda desses interesses para resolver problemas de curto prazo, quanto representará em perdas para o Estado Português nos próximos 10 anos?

5. Será que a nossa memória é tão curta que nos esquecemos que hoje estamos a pagar o desaparecimento da nossa frota pesqueira e da nossa indústria a troco dos milhões da Europa, precisamente no período em que o actual Presidente era Primeiro-ministro? 

6. Será tudo isso, nomeadamente o desprezar a educação e os jovens altamente qualificados, o hipotecar o futuro, menos grave que o segundo governo de Sócrates?

Sabemos que a memória é selectiva e na maioria das vezes bastante curta, mas importa ter sobre os acontecimentos e a História uma leitura crítica e não nos deixarmos arrastar por semi-verdades ou falsas verdades que nos pretendem impingir como verdades absolutas. Esse é um exercício de cidadania quotidiano que nos cabe a todos e a cada um de nós.

Pergunto-me muitas vezes por que razão a minha geração, que tanto sonhou com uma sociedade mais justa, falhou de tal modo que caímos na situação que hoje vivemos. Este não é um problema apenas do nosso país, mas das sociedades actuais. A verdade é que talvez tenhamos confiado demasiado em quem não devíamos e que fomos aceitando, também por comodismo, pequenos desvios que julgávamos sem importância e que, se quase darmos por isso, fizemos demasiadas concessões e abdicamos dos nossos sonhos. Isso não pode voltar a acontecer, as meias-verdades, as pequenas omissões, os pequenos desvios, as pequenas coisas sem importância, transformar-se-ão mais tarde em grandes mentiras aceites pela maioria como sendo verdades absolutas. A escolha depende apenas de nós.

Em 2015 tentem Ser Felizes em Seara de Gente e não deixem de construir o futuro.

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