QUANDO AS PESSOAS SÃO APENAS ESTATÍSTICAS
Sente-se na sociedade portuguesa uma violência latente, um descontentamento sem alvo definido, um desespero a um passo de passar aos atos. O sentimento de impotência pode, de um momento para o outro, transformar-se em atos de desespero de quem não tem nada a perder. Na verdade, para muitos, o que lhes resta é apenas nada ou um pouco mais que isso. Este estado de aparente letargia pode também despoletar, em alguns grupos mais radicais, sentimentos de uma revolta incontida ou, pior ainda, o reacender de ideologias que desejaríamos bem longe das nossas vidas. E tudo começa, como sempre, como coisas sem importância, como acontecimentos ou sinais ténues e dispersos. E quando despertamos da letargia, é quase sempre tarde demais, já não existe nem espaço nem tempo para os sonhos que sonhámos e desejaríamos construir com outros. Veja-se o exemplo da Grécia com o encerramento do serviço público de rádio e de televisão: os únicos a aplaudir a decisão foram os radicais de extrema direita, os neofascistas do grupo «Aurora Dourada». A facilidade com que se encerra um serviço que, apesar de todos os defeitos, é símbolo da liberdade de informação, colocando no desemprego mais de duas mil pessoas, a maioria delas qualificadas, mostra que para os vendilhões desta Europa as pessoas são pouco ou nada importantes.
O reconhecimento de erros, da parte do FMI, no que respeita à sua intervenção na Grécia, ao contrário de nos deixar sossegados, deixa-nos ainda mais angustiados e desconfiados. Seria normal, porque «errare humanum est » que, para quem seja humilde o suficiente para fazer mea culpa, isso nos sossegasse. Sendo certamente condição necessária, reconhecer o erro não é condição suficiente, pois exigiria, numa linguagem mais cristã, conversão. Ou seja, numa linguagem mais laica, mudança de rumo, alterar o que conduziu ao erro. Infelizmente para todos nós, não é isso que parece acontecer. Sobre este comportamento, podemos retirar algumas ilações:
1. Que os decisores atribuem pouca importância às pessoas e ao sofrimento que as suas decisões lhes causam. As pessoas são apenas estatísticas que se devem ajustar aos seus interesses, sejam eles económicos, de poder ou outros menos evidentes.
2. Que mais importante que a vida das pessoas são os modelos que os podem perpetuar no poder ou, pelo menos, mante-los (aos decisores) próximos da esfera do poder.
3. Que o mundo da finança e do poder é profundamente imoral e sem qualquer tipo de ética.
4. Que a solidariedade entre os países, nomeadamente europeus, é apenas um pretexto para que decide e deseja, custe o que custar, manter-se na esfera do poder. Não importa o lugar, desde que aí se mantenha.
Aliás, em Portugal temos bons exemplos do que atrás foi escrito: basta prestar alguma atenção às declarações e comportamento de alguns atores políticos da esfera do poder – europeu e mundial – perfeitamente alinhados com as teses dominantes, para percebermos que as suas preocupações nada têm a ver com o bem estar das pessoas, mas tão só e apenas o continuarem na roda do poder, mesmo que para isso tenham que vendar a sua alma ao diabo. António Borges e Gaspar são a ilustração perfeita do que acabei de escrever. Mas há outros. Infelizmente, é este tipo de decisores, nacionais e internacionais, que decidem sobre o nosso futuro.
Acabar com este governo já não é apenas uma questão política, é uma questão de dignidade de todo um povo. Para além dos muitos atentados deste governo à dignidade das pessoas, relembro aqui dois dos últimos episódios. O primeiro é a pretensão em apresentar proposta legislativa que permita ao governo divulgar os beneficiários dos apoios sociais. Para além de se tratar de uma violação dos direitos de liberdade e garantias, abre caminho a denúncias, comportamento próprio de um estado ditatorial. Como não sendo suficiente a situação de fragilidade que essas pessoas vivem, há ainda que expo-las, tal qual os criminosos em praça pública, aos olhares condenatórios dos seus concidadãos. Palpita-me que o objetivo do governo seria que alguns desses beneficiários desistissem dos apoios, evitando assim sujeitarem-se à vergonhosa exposição pública. Assim sempre se poupam mais uns tostões. Que valem as pessoas quando o importante é corresponder ao que os outros – os mercados – querem que façamos ?!
O segundo, é o não pagamento, em devido tempo, do subsídio de férias aos funcionários públicos. Que diria o governo se os mesmos decidissem não pagar os impostos em devido tempo? Um governo com salários em atraso é coisa nunca vista. Qualquer decisor que se prese, face às dificuldades, a sua preocupação deve ser o assumir os compromissos perante aqueles cujas famílias dependem das suas decisões. Infelizmente, decisores que se presem são hoje quase peças de museu.
Mário Soares não é certamente, como fez questão de afirmar José Luís Arnaut do PSD, um professor da Democracia, mas é certamente um democrata que nunca deixou de pensar no País, independentemente das circunstâncias e assumindo, em cada momento, as suas responsabilidades e opções. Concorde-se ou não. Infelizmente nem todos se poderão orgulhar do mesmo, sobretudo aqueles a quem a notoriedade lhes foi emprestada por serviços prestados, não ao País, mas ao partido que os promoveu. Não basta dizer que se é democrata, importa prová-lo ao longo da vida, assumindo os erros, os insucessos e fracassos, mas nunca deixando que valores não explicitados se sobreponham aos valores da democracia. Mário Soares, ao contrário dos muitos ditos políticos e comentadores que por aí proliferam, provou-o em diferentes situações, por isso merece respeito e merece ser ouvido, concorde-se ou não.
Finalmente, um alerta: dos utentes que frequentam as IPSS, 74% dos agregados vivem com menos de 500 euros por mês, sendo que 52% tem um rendimento inferior a 400 euros. Ao contrário dos anos 80, em que a fome se concentrava em zonas industriais, hoje ela é muito mais dispersa, envergonhada e, por isso mesmo, menos visível. É importante que todos tenhamos presente esta realidade, pois o País não é feito de percentagens e estatísticas, mas de PESSOAS.
Sejam felizes em seara de gente.
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