MICROCRÉDITO: será que a missão perdeu o brilho de outrora?
Algumas notícias surgidas na imprensa, sobretudo internacional, nos últimos meses, diria mesmo nos últimos anos, não têm sido favoráveis ao microcrédito e, por extensão, ao mundo da microfinança. Problema acrescido quando, na maioria dos casos, as notícias se referem a matéria factual sem o devido enquadramento e, quiçá por desconhecimento, sem uma análise crítica dos factos em causa.
Surgiu agora a notícia de que o Governo do Bangladesh criou uma Comissão para analisar o futuro do Grameen Bank e das 54 empresas a ele afetas. A ideia que parece estar subjacente a esta iniciativa é o controlo da atividade do Banco e das suas empresas, sujeitando-o às regras aplicadas pelas agências de supervisão do país aos bancos comerciais.
Contudo, os mais atentos dizem existir um outro objetivo nesta iniciativa e que é, por razões de política interna, o afastamento definitivo de Yunus do controlo do mundo Grameen. Importa relembrar que, apesar do afastamento de Yunus da Direção do Banco, em Abril 2011 e após uma batalha jurídica, ele continuou a dirigir as empresas do grupo.
Também não terá sido por acaso que o mesmo governo, através da sua primeira-ministra Sheikh Hasina, que o afastou do banco, o propôs, em Fevereiro último, para a Presidência do Banco Mundial (BM). Yunus recusou, declarando: "Nunca pensei em assumir a liderança do BM ou de qualquer outra instituição multilateral semelhante. Tenho sido regularmente crítico das políticas e dos programas do BM".
Embora o governo possua uma pequena percentagem no capital do Grameen, tenha direito a três das doze cadeiras do Conselho de Administração e tenha direito de voto na escolha dos principais executivos do banco, a verdade é que sempre mostrou, ao longo dos anos, ser um acionista relativamente passivo. Aliás, atitude semelhante demonstrou para com outras instituições (existem cerca de 1 000 instituições de microcrédito reconhecidas). Só em 2006 o governo sentiu necessidade de supervisionar formalmente o setor da microfinança e criar a Autoridade Regulatória do Microcrédito (MRA). Contudo, o Grameen não está sujeito à atuação da MRA por ser regido por um alvará especial.
O grupo Grameen, pela sua evolução e crescimento, e sobretudo o banco com as suas 2 900 agências que empregam cerca de 23 000 pessoas, com mais de 13 000 analistas de crédito (quase todos mulheres), assume um papel preponderante no desenvolvimento do país e representa, do ponto de vista societal e político, uma força considerável face a governos frágeis, mas tal realidade nunca terá contribuído para deteriorar as relações entre Yunus e o Governo.
A relação entre ambos, sobretudo entre Hasina e Yunus, começou a deteriorar-se quando, em 2007, o fundador do microcrédito, conhecido como o 'banqueiro dos pobres', fez uma incursão na política, primeiro como mediador entre forças e depois com a ameaça de criar um partido político, dada a situação do país.
Logo após ter percebido o seu erro de avaliação, Yunus recuou, mas a partir daí começou a ser olhado pelos outros políticos, sobretudo da área governamental, como uma ameaça ao seu próprio poder, um concorrente não desejado.
Segundo alguns especialistas, se a tensão aumentar, o governo – entenda-se a primeira-ministra Sheikh Hasina – pode tornar as coisas muito difíceis para Yunus. Uma das críticas feitas a Yunus é a de não ter preparado cuidadosamente a sua sucessão. Aliás, este é um problema comum a muitas organizações. Yunus preferiria uma transição tranquila, já que uma agudização da tensão pode ter como consequência a saída de quadros – seriam muito mais valorizados noutras instituições – e também de muitos aforradores (financiadores dos empréstimos).
Nos últimos anos, os perigos que pairam sobre o microcrédito e a microfinança têm-se adensado, nomeadamente pela intromissão da política, pelos aproveitamentos, e, sobretudo, pela criação de condições favoráveis à inserção do objetivo do lucro (tendência para maximizar o lucro) nos negócios de microcrédito.
A apreensão é muita e compreende-se, já que a introdução de estranhos no setor pode conduzir ao seu desmantelamento. São cada vez mais os fundos financeiros, participados pelos grandes bancos, com o objetivo de investimentos na área da microfinança. Segundo as Nações Unidas e de acordo com estudos realizados na Índia, no Quénia e nas Filipinas, o elevado retorno anual médio dos investimentos em micronegócios leva a que muitas Instituições de microfinança façam parcerias com grandes instituições financeiras para expandirem a oferta de serviços, tais como contas de poupança e seguros, correndo dessa forma o risco de uma expansão não sustentada e de maior dependência dos critérios desses parceiros.
Assim se percebe o interesse dos mercados financeiros pelo negócio, exigindo às instituições uma rentabilidade crescente e sem qualquer tipo de preocupação com as consequências sociais que daí possam advir. Há quem acredite que haverá espaço para instituições lucrativas e não-lucrativas e que ambas serão necessárias, desde que se estabeleçam regras, nomeadamente no que se refere às taxas de juro (nalgumas regiões situam-se entre os 40 e 50%) e se clarifique o espaço de ambas, porventura cabendo às não-lucrativas os setores mais desprotegidos da população.
O que se passou recentemente na Índia e o que já havia acontecido com a Compartamus no México, assim como em Marrocos, devem servir-nos de alerta e ajudar-nos a perceber que o «processo Yunus» não é inocente e pode ter consequências imprevisíveis. O debate atual sobre a realidade da microfinança é muito mais vasto e a ele não é alheio o comportamento dos mercados financeiros, sobretudo quando se procura o investimento mais lucrativo, não assumindo qualquer risco de inovação com vista à erradicação da pobreza. Se essa for a via, o setor lucrativo decretará antecipadamente o fim do sistema de microfinança.
Como sublinham alguns especialistas, as instituições, porque necessitam de fundos e influenciadas e aconselhadas por consultores externos, ao pretenderem uma rendibilidade e uma produtividade próximas do setor privado, correm o risco de perderem o que tinham de essencial: a proximidade e a relação de confiança com os seus “clientes”. Será que a missão perdeu o brilho inicial ou esta é apenas uma etapa de clarificação e de reafirmação dos seus princípios básicos?
Sejam felizes em seara de gente.
Este artigo foi publicado no boletim da Associação Nacional de Direito ao Crédito Nº 48 (http://www.microcredito.com.pt/downloads/Boletim-Not%C3%ADcias%20do%20Microcredito/micro48net.pdf)
Comentários
Enviar um comentário